Comunidades que resistem com força e sabedoria, evidenciando outras formas de habitar o mundo
26 de agosto de 2025
Por Fernanda Nascimento Ribeiro, estudante de Jornalismo da UFMG, para a disciplina de Assessoria de Comunicação, sob supervisão de Camila Mantovani
“Demarcar é o governo reconhecer o lugar que a gente já vive. Respeitar o lugar que a gente já vive. Não é nenhuma coisa da engenharia, não é nenhuma coisa de topógrafo. É nós, com nossa cultura, com nossa memória dos nossos territórios, demarcando os nossos territórios. É a nossa alteridade, a nossa identidade. E o Estado brasileiro tem que respeitar essa decisão nossa. Nós apontamos onde é o limite do nosso território. Isso é ‘demarcação, já!’. É a campanha que nós estamos fazendo. A situação política do país está meio torta, mas a gente não pode se impressionar com isso. A gente tem que seguir firmado nos nossos territórios, na nossa cultura, buscando também desenvolver nossas próprias capacidades locais para a gente ter autonomia. Demarcação, já!” (Ailton Krenak, escritor, ativista e liderança indígena, em entrevista ao Instituto Mpumalanga, no ano de 2017).
Movimento indígena contra o Marco Temporal. (Créditos: Clodoaldo Arapiuns | Via Agência Pública).
De Esmeraldas à Caeté, de Mateus Leme à Jaboticatubas… Segundo o Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de cinco milhões de pessoas vivem na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), composta por uma incrível diversidade de comunidades, culturas e modos de vida que coexistem, se cruzam e, muitas vezes, resistem.
Entre as comunidades tradicionais da RMBH, estão povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Cada um deles carrega histórias profundas, saberes ancestrais e vivências que se conectam diretamente com o território. Entretanto, manter essas raízes não é algo simples: o direito à terra, ainda que previsto na Constituição brasileira, precisa ser constantemente reafirmado. Isso faz com que as comunidades enfrentem disputas e lutem contra violências praticadas inclusive pelo Poder Público. Na Região Metropolitana de BH, dois grupos seguem resistindo e afirmando sua existência mesmo quando parecem invisíveis ao Estado: os Pataxó HãHãHae, em São Joaquim das Bicas, e o Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, em Belo Horizonte.
Em 2017, um movimento de retomada começou a ganhar forma na Aldeia Naô Xohã, fundada por indígenas Pataxó, Pataxó HãHãHae e outros parentes, que encontraram possibilidades de reconstruir vínculos com a terra e com as suas tradições. Devido ao rompimento da barragem da Vale, em 2019, na cidade de Brumadinho, esse recomeço foi violentamente interrompido. A aldeia foi uma das atingidas pela lama e pela poluição, e a comunidade se viu desamparada diante da tragédia que causou a morte de 270 pessoas.
Os Pataxó HãHãHae, então, tiveram que se deslocar para o perímetro urbano de Belo Horizonte. Ali, enfrentaram mais um desafio: a pandemia de covid-19, que aprofundou ainda mais as vulnerabilidades da comunidade. Foi só em 2021 que os indígenas puderam retomar o vínculo com a terra. A comunidade passou a ocupar uma área conhecida como Mata do Japonês, em São Joaquim de Bicas, cuja proprietária era a Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira. Inicialmente vendida, a região foi posteriormente doada pela Associação aos Pataxó HãHãHae, em respeito à luta indígena pela proteção daquele território. No novo local, foi fundada a aldeia Katurãma, liderada pela Cacique Célia Angohó.
Comunidade indígena da Aldeia Katurãma, em São Joaquim de Bicas. (Créditos: Felipe Cunha/Aedas).
Infelizmente, a comunidade continua enfrentando ameaças. Há décadas, a Mata do Japonês é alvo do garimpo ilegal. Os Pataxó HãHãHae denunciam ações de invasão, intimidação e violência, enquanto seguem firmes, lutando por seus direitos e reafirmando o compromisso de proteger a terra e os seus modos de vida.
O Quilombo, localizado em Belo Horizonte, foi fundado na década de 1970 por Mãe Efigênia, referência da cultura afro-brasileira e das religiões de matriz africana. Ao longo dos anos, o quilombo cresceu como espaço de acolhimento, espiritualidade, memória e luta. Porém, como tantas outras comunidades tradicionais no Brasil, o Manzo enfrentou, e ainda enfrenta, o peso da invisibilidade nos papeis oficiais. Em 2012, mesmo com décadas de ocupação contínua e com uma importância cultural já amplamente reconhecida, a Prefeitura de Belo Horizonte iniciou uma ação de despejo da comunidade, utilizando a justificativa da ausência de regularização formal do local.
Diante disso, a comunidade se mobilizou, buscou apoio em redes sociais, na imprensa e até no ambiente acadêmico. A força dessa reverberação permitiu que o quilombo retomasse o seu território e conquistasse, em 2018, o reconhecimento de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais, um marco simbólico e político que reforça o valor de suas práticas, saberes e vivências.
No entanto, uma nova ameaça ao quilombo surgiu: a da mineração. A Serra do Curral, que cerca o território do Manzo, é alvo de exploração pela mineradora Tamisa. A empresa ignorou a comunidade quilombola ao entregar os estudos de impacto ambiental sobre a Serra em 2018, descumprindo a lei. Mesmo assim, o Manzo resiste nas tradições, nas celebrações e na defesa do território.
Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, na região Leste de Belo Horizonte (Créditos: Reprodução/IEPHA).
A história da Mata do Japonês nos mostra que território não se trata apenas de limites geográficos, mas de locais onde confluem a memória, o pertencimento e o futuro. Tanto os Pataxó HãHãHae quanto o Quilombo Manzo enfrentam obstáculos parecidos: a ausência de reconhecimento por parte do Estado, a violência de agentes econômicos e a invisibilidade diante de um modelo de cidade que insiste em apagar o que não se encaixa em seus moldes.
Apesar das dificuldades, essas comunidades resistem com força e sabedoria, evidenciando outras formas de habitar o mundo, baseadas no cuidado, no coletivo e no vínculo com a terra. A pergunta que fica é: o que território significa para você? Um lugar físico ou também um espaço de sonhos, cultura e resistência?