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A solidão latino-americana e o realismo mágico na literatura

Saiba mais sobre a produção literária que marca a resistência, a memória e a vasta cultura da América Latina

 

27 de maio de 2025

 

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Por Ana Carolyna Gonçalves Barboza,

mestranda em Comunicação Social e assistente do Núcleo de Comunicação

 

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

 

O trecho acima dá início à obra “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, consagrado autor colombiano, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e um dos principais expoentes do realismo mágico.

 

Por meio de relações complexas entre personagens cativantes, histórias do cotidiano e fenômenos extraordinários, as obras do realismo mágico rompem a divisão que separa o real e o fantástico, encantando leitores ao redor do mundo. Essa corrente literária, que de forma tão sólida criou raízes na América Latina, nos leva à questão que guia o texto de hoje: como a literatura pode expressar as vivências, as memórias e as lutas de diferentes povos, costurando a realidade e a magia?

 

O realismo mágico foi inicialmente discutido na Europa, a partir do século XX, com o livro “Nach Expressionismus (Magischen Realismus)”, em tradução livre: “Depois do Expressionismo (Realismo Mágico)”, publicado em 1925 pelo crítico de arte alemão Franz Roh. À época, o conceito era associado, sobretudo, às artes visuais e descrevia características do pós-expressionismo. No entanto, o realismo mágico irrompeu na América Latina e criou autonomia em relação à perspectiva europeia, desenvolvendo especificidades próprias e se fundamentando na literatura. 

 

As narrativas que vão de encontro ao realismo mágico apresentam uma fusão entre o que é considerado possível e impossível, tratando com naturalidade os elementos surreais. A magia não causa estranhamento, ao contrário, faz parte do cotidiano e move a vida tanto quanto os elementos inerentes à realidade.

 

As narrativas na América Latina já encontram aqui o material necessário para se desvincularem de modelos estrangeiros que concebem o “mágico” como algo restrito à imaginação. Na concepção de realismo mágico da América Latina não se abandona a realidade concreta para se criar outra realidade só possível no mundo da imaginação. Há uma percepção da realidade nos feitos e nas personificações mágicas do cotidiano. (Santos; Borges, 2018, p. 22).

 

Durante os anos 1950, 1960 e 1970, escritores latino-americanos passaram a se engajar intensamente na escrita do realismo mágico, em um contexto histórico que indica um período autoritário, antidemocrático e opressor para a América Latina: a consolidação de ditaduras em diversos países da região. A literatura, portanto, se tornava espaço de resistência contra regimes violentos e coercitivos.

 

O realismo surge como uma forma de reação, utilizando o elemento mágico como reforço das palavras contrárias aos regimes dos ditadores, tentando driblar a censura comum a esses regimes. Foi uma maneira de reagir por meio da palavra. Por mais fantástico que possa parecer, há história aqui, e esse gênero não é o fantástico puro da literatura europeia, mas um realismo mágico, um gênero literário específico. (Maia, 2016, p. 377).

 

Mesmo que a arte não esteja comprometida a se materializar como um espelho ou um retrato completo da realidade, as expressões artísticas apresentam um cunho político e cultural que reverbera na sociedade, sendo capazes de contribuir para a reflexão crítica, a preservação da democracia e a diversidade de perspectivas. Nesse sentido, a literatura e o realismo mágico conduziram histórias que confrontavam um cenário marcado pela repressão de grupos minorizados e a supressão de liberdades da sociedade civil.

 

O que eu mais temo é poder com impunidade. Tenho medo do abuso de poder e do poder para abusar. […] Eu acho que chegou a hora de fazermos mudanças fundamentais em nossa civilização. Mas para a mudança real, precisamos de energia feminina para comandar o mundo. Precisamos de muitas mulheres em posições de poder, e precisamos passar a energia feminina aos homens. (Isabel Allende, escritora chilena, em conferência do TED Talk, intitulada “Histórias de paixão”).

 

A América Latina encontrou na corrente literária do realismo mágico formas de afirmar, construir e reconstruir a identidade da região, valorizando sua multiplicidade cultural, linguística, social e geográfica. Em meio às marcas do colonialismo, aos contínuos mecanismos da colonialidade, às lutas contra regimes ditatoriais e às incessantes buscas pela perpetuação da memória, se instaura a solidão latino-americana que reflete o que há de mais surreal em suas nações: a própria realidade.

 

Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde então com mais ímpeto que nunca as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda. Não tivemos, desde então, um só instante de sossego. […] Neste lapso houve cinco guerras e dezessete golpes de Estado, e surgiu um ditador luciferino que em nome de Deus leva adiante o primeiro etnocídio da América Latina em nosso tempo. […] Eu me atrevo a pensar esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão. (Gabriel García Márquez, escritor colombiano, em discurso proferido ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982).

 

Ainda que não seja restrito a um determinado contexto, idioma ou território, o realismo mágico apresenta um vínculo com a literatura latino-americana, que deve ser propriamente reconhecido. A produção de obras alicerçadas na realidade local da América Latina (Santos; Borges, 2018) evidencia um fazer literário repleto de singularidades, saberes e vivências dos países da região.

 

A violência e a dor desmedida da nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e não uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa. […] Enquanto isso, os países mais prósperos conseguiram acumular um poder de destruição suficiente para aniquilar cem vezes não apenas todos os seres humanos que existiram até hoje, mas a totalidade de seres vivos que passaram por esse planeta de infortúnios. […] Diante desta realidade assombrosa, que através de todo o tempo humano deve ter parecido uma utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nos sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra. (Gabriel García Márquez, escritor colombiano, em discurso proferido ao Prêmio Nobel de Literatura de 1982).

 

A arte, enquanto maneira de existir e resistir, rememora o passado e cria novos caminhos de expressão e identidade. Por isso, a verdadeira magia da literatura latino-americana reside nas possibilidades de transformar a dor em uma chuva de flores amarelas e de nunca esquecer as marcas da realidade para lidar com a solidão.  

 

Referências

MAIA, G. L. Alumbrar-se: realismo mágico e resistência às ditaduras na América Latina. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 371-388, 2016. Disponível em: https://periodicos.rdl.org.br/anamps/article/view/92. Acesso em: 20 jan. 2025.

SANTOS, B. C. dos; BORGES, E. J. Realismo mágico e real maravilhoso: um anseio de afirmação da literatura latino-americana. Cadernos CESPUC de Pesquisa Série Ensaios, n. 32, p. 20-27, 12 abr. 2018. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/view/16946. Acesso em: 20 jan. 2025.

A solidão da América Latina – Discurso de García Márquez no Nobel de Literatura.

 

Livros de autores latino-americanos, com elementos do realismo mágico

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

A casa dos espíritos, de Isabel Allende

Ficções, de Jorge Luis Borges

Pedro Páramo, de Juan Rulfo

Mata Doce, de Luciany Aparecida

A cabeça do santo, de Socorro Acioli