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CIGANOS CALON E AS CIDADES

05 de junho de 2024

 

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“Meu pai andava no Espírito Santo. Andava de tropa e de cavalo. Da divisa de Goiás para cá. Andei tudo a cavalo. Valadares. Tanhumirim, Teófilo Otoni.”

 

A presença dos ciganos nas cidades é um fato identificado pelos registros oficiais e também pelas histórias narradas sobre “pousos” ou “acampamentos” pelos próprios calon mineiros. A memória coletiva calon separa o período “de andança” e “passagem” no “tempo dos antigos” e de “parar” e “fixar” no “tempo de hoje”. No tempo dos antigos, a movimentação ou itinerância das famílias calon pelas cidades ou regiões era bem mais intensa. Os chefes da turma chegavam antes para conversar com o prefeito ou o juiz da cidade para conseguir um “alvará” de permanência e assim evitar as perseguições de policiais e os conflitos com os “donos da terra”.

 

Passar pelas cidades, conhecer os lugares e seus habitantes, e escolher pousos que vão permitir uma vida sossegada entre parentes faz parte do modo de vida calon. Um bom pouso dever ter água nas proximidades e espaço suficiente para que as famílias com laços de parentesco possam construir as suas barracas perto umas das outras para uma boa vida nos termos calon: encontrar, conversar, receber visitas, jogar cartas, e, com muita animação, organizar e celebrar festas de casamentos que duram muitos dias!

 

Mas as cidades crescem cada vez mais rápido. Por muitas vezes, as famílias calon que vivem em áreas públicas são “empurradas” para áreas mais distantes para dar lugar a obras de infraestrutura. A cidade chegou até lá, como dizem os calon mais antigos na região de São Gabriel (BH), e os espaços para acampamento têm se tornado cada vez mais escassos. A busca por pousos “fixos” são produto dos “tempos de hoje”, que remonta há mais de 30 ou 40 anos até chegar à atualidade.

 

Ainda nos anos 1980/1990 começam a ser formados os maiores acampamentos de ciganos calon na cidade de Belo Horizonte, no Bairro de Céu Azul, e, algum tempo depois, na região do Bairro de São Gabriel. Estas localidades foram escolhidas por serem locais de passagem já conhecidos, e mais distantes do centro da cidade (naquela época), mas que também permitiam um bom local para “catira”, que é o nome utilizado pelos calon para se referir às trocas de bens diversos que eles fazem geralmente com os gajon (não ciganos), envolvendo dinheiro ou não.

 

Acampamento calon em São Gabriel (2013)

 

Céu Azul e São Gabriel são pontos em uma rede de localidades onde vivem e convivem os ciganos mineiros na região metropolitana de Belo Horizonte, e além. Os acampamentos são compostos, principalmente, por barracas e casas muito bem decoradas e coloridas, dando a ver a diversidade de formas de ocupação e habitação no espaço que variam de acordo com os modos de viver das diferentes populações da região metropolitana de Belo Horizonte. No dia a dia, homens, mulheres, idosos e crianças se reúnem em rodas de conversas com parentes e visitantes, ocasião em que são contadas muitas histórias de andanças no passado e os planos de vida para o futuro.

 

Esses encontros acontecem na parte externa da tenda ou nas varandas, uma vez que os calon gostam de liberdade e, como eles dizem, de “serem vistos”. Para um visitante externo, as experiências das dificuldades de ser calon em um mundo majoritariamente gajon é o tema principal, e, na atualidade, em função de uma compreensão bastante difundida, mas muito distante da realidade, principalmente nas cidades, de que os ciganos são povos nômades e não tem pouso fixo.

 

Interior de uma barraca

 

Já os ciganos da etnia Rom vivem em bairros em que se identifica uma presença numerosa de famílias ciganas, como é o caso do Bairro Inconfidentes na cidade de Contagem, onde o ponto de referência como a Praça Marília de Dirceu também é conhecida como Praça dos Ciganos. Diferentemente dos calon, entretanto, a moradia em casas de alvenaria não torna tão visível a diferença no modo de habitar em relação à sociedade majoritária.

 

Casamento Cigano

O casamento cigano é um espetáculo à parte do dia a dia mais tranquilo da convivência no acampamento calon. A festa é organizada com antecedência para que os pais dos noivos possam ofertar uma celebração muito animada, com a presença de convidados que também vêm de outras cidades. No período que antecede a festa, este é o principal assunto no acampamento, que também ocupará as mulheres na confecção dos melhores vestidos para os vários dias de festa que virão!

 

Tem festa de casamento cigano? Está garantida a presença de muitos convidados, música, dança, comida e cerveja durante vários dias… 3,4,5,6,7…! As mulheres e meninas ciganas usam os vestidos mais brilhosos, já os homens e os meninos usam camisa de botões, cintos e botas em estilo cowboy. A música em alto volume é uma seleção de forró sertanejo que está na ponta da língua dos convidados e embala a pista de dança que começa no final da tarde e vai até o dia amanhecer, para recomeçar no dia seguinte…

 

No último dia é celebrado o casamento entre os noivos que são, geralmente, “pareados”, isto é, devem possuir afinidades e idades próximas. O primeiro casamento entre os calon ocorre quando ainda são bem jovens, e, por essa razão, o casal deverá montar a barraca ou construir uma casa ao lado dos pais do noivo, a quem estão incumbidas as tarefas de cuidados e de orientações para a vida comunal do novo casal.

 

As famílias dos noivos unidas por aliança passam a ter maior cumplicidade e convivência, e, por isso, há muitas expectativas envolvidas no sucesso desta união, e nos descendentes que sempre são muito esperados por todos! 

 

Dança em celebração de casamento

 

ETNIAS CIGANAS E POPULAÇÔES TRADICIONAIS

No Brasil, é reconhecida a existência de três grupos ciganos: os Calon, os Rom e os Sinti. Estes grupos étnicas são diferenciados pela procedência de alguma parte da Europa e pela diferença da língua. Registros oficiais portugueses informam a deportação de famílias de ciganos calon de Portugal para o Brasil entre os séculos XVI e XVII.

 

Os Calon foram os primeiros a chegar no território nacional vindos da Península Ibérica. É o grupo étnico e fala a língua conhecida como calé ou chibi., além do português. Os Rom são provenientes da Europa Central e do Leste e a sua chegada, mais tardia, ocorreu no século XIX. A língua dos Rom é conhecida como romanes, mas também falam o português. Os Rom se subdividem em subgrupos: Kalderash, Macvaia, Rudai, Horahané, Lovara, entre outros. Acredita-se que ciganos da etnia Sinti também entraram no Brasil no final do século XIX, mas são poucas as notícias e informações sobre os Sinti em território brasileiro.

 

O reconhecimento dos ciganos como povos e comunidades tradicionais foi mais tardio em comparação com as comunidades quilombolas e os povos indígenas. No entanto, a partir da primeira década do século XXI, as lideranças ciganas passaram a ocupar espaços institucionais, primeiro por meio da representação de membros de associações ciganas e, posteriormente, como lideranças de várias regiões do Brasil. Isso têm permitido aos ciganos difundir os processos de discriminação histórica pelo qual passaram, e ainda passam, além de fortalecer a reivindicação por políticas públicas específicas para as comunidades ciganas, especialmente para aquelas que moram em acampamentos e ainda sofrem pelas condições de vida muito precárias.

 

A demanda coletiva pelo direito à permanência e regularização fundiária dos espaços/territórios nas cidades mineiras têm crescido bastante. O acampamento dos calon em São Gabriel, que foi regularizado em 2014, é um caso pioneiro, e inspirou outras demandas na RMBH. A demanda coletiva pela regularização fundiária foi provocada por uma disputa fundiária provocada pelo próprio Estado. O projeto de duplicação do Anel Rodoviário pelo DNIT, ainda em 2010, visava realocar famílias não ciganas e construir unidades habitacionais na área do acampamento. Pela primeira vez, com o protagonismo da liderança calon em São Gabriel, a ação estatal que visava provocar um deslocamento compulsório não foi acatada. O reconhecimento como povos tradicionais permitiu um diálogo com o poder público baseado no “direito a ter direitos”, contrapondo o estereótipo do nomadismo, bastante distante da atual realidade cigana no Brasil urbano. 

Calon segurando o Guia de Políticas Públicas para Ciganos

[Texto de autoria de Helena Dolabela, advogada e antropóloga, NuQ/UFMG.]