A solene vestimenta expressa a conexão com o território e o protagonismo indígena em suas produções
08 de agosto de 2023
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“O Manto traz a luta do território, a vida do território. O Manto precisa que o território viva”. Essa passagem de Glicéria Tupinambá, artista e professora da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (BA), retrata a relação entre o Manto Tupinambá, o território e o resgate cultural de um povo repleto de ricas tradições e saberes.
Em 1500, os Tupinambá habitavam Pindorama (Terra das Palmeiras, como o Brasil era chamado na época), em uma localização próxima à Bahia, quando os europeus dominaram seu território. Desde então, o povo Tupinambá manifesta resistência e coragem para viver em harmonia com a terra que abriga sua história e ancestralidade.
Gravura de Theodor de Bry, século XVI (Reprodução/Os primeiros brasileiros, Museu Nacional UFRJ)
Foi apenas em 2001, que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) reconheceu oficialmente a existência da etnia Tupinambá. Oito anos depois, em abril de 2009, a primeira fase para a demarcação do território foi concluída, com a publicação do resumo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Em um processo histórico repleto de violações, o povo Tupinambá, assim como diversos outros povos originários, buscam a revitalização de sua cultura e a segurança de sua comunidade.
Assojaba Tupinambá
O Assojaba Tupinambá (Manto Tupinambá) é uma vestimenta sagrada, utilizada em rituais e composta por penas de aves nativas. A preservação do território e de sua natureza garante que a colheita das penas seja feita de forma respeitosa e também protege a vida que flui no Manto.
A indumentária emplumada representa para o povo Tupinambá uma confluência entre a dimensão espiritual (os Encantados e os antepassados), o meio ambiente, a economia e a agroecologia e a transmissão de saberes.
Para além do notável significado histórico, o Manto também traz em si uma imensurável importância para o contexto presente, a partir de sua forte presença identitária que garante a permanência da cultura, memória e cosmologia do povo Tupinambá a cada geração. O Manto expressa o protagonismo indígena em suas produções, rituais e tradições.
De volta ao Brasil
Atualmente, sabe-se da localização de onze mantos remanescentes, produzidos durante o período colonial brasileiro. Todos eles se encontram na Europa, em museus da Dinamarca, Suíça, Bélgica, França e Itália, mas, em breve, um deles retornará ao Brasil!
Em junho de 2023, o Nationalmuseet (Museu Nacional da Dinamarca) anunciou a devolução de um Manto Tupinambá, que passará a integrar o acervo do Museu Nacional (Rio de Janeiro-RJ). Feito de penas vermelhas de guará, costuradas em uma base de fibra natural, o Manto é um dos mais bem conservados ao redor do continente europeu e antes da transferência permanente para o Brasil será fotodocumentado para pesquisas futuras.
Manto Tupinambá, exposto no Museu Nacional da Dinamarca (Foto: Niels Erik Jehrbo/Nationalmuseet)
O Museu do Quai Branly, em Paris, na França, também abriga um manto que foi recriado por Glicéria Tupinambá e integrado à exposição “Feito de Folhas e Penas: Saberes dos matos Pataxó & Assojaba Tupinambá”, do Espaço do Conhecimento UFMG, entre os meses de outubro e dezembro de 2022. Pilar central do eixo “Assojaba Tupinambá”, o Manto exposto no Espaço do Conhecimento foi confeccionado em 2020, partindo de uma base de cordão de algodão cru encerado com cera de abelha tiúba da Serra do Padeiro, na Bahia, sobre a qual foram colocadas as penas. A base de algodão foi trançada seguindo a técnica de tecelagem do jereré, ferramenta de pesca utilizada pelos anciões da aldeia. O marrom foi sua cor predominante, composto de penas de aves nativas da região: galinha, galo, gavião, pato, peru, pavão, tururim, sabiá-bico-de-osso, canário-da-mata, gavião-rei, gavião-perdiz e arará.
O processo de confecção do Manto foi possível graças ao diálogo com os Encantados, as anciãs e toda a comunidade. O reavivamento de memórias e o gesto de revitalização da cultura, em constante troca com os saberes tradicionais do povo Tupinambá, também permitiram que uma parte da história da volta do Assojaba pudesse ser contada no Espaço do Conhecimento.
Manto Tupinambá, recriado por Glicéria Tupinambá, na exposição “Feito de Folhas e Penas” (Foto: Espaço do Conhecimento UFMG)
A confecção da vestimenta e o seu retorno para o Brasil abrem reflexões sobre o reconhecimento e o respeito necessário para que possamos honrar e proteger as produções indígenas, que também guardam a história e cultura do nosso país.
O Manto revela uma delicada conexão entre o universo espiritual, ancestral e terreno e nos lembra da importância de atribuí-lo ao seu contexto de origem: o território Tupinambá.
Confira o making of da exposição Feito de Folhas e Penas no YouTube!
[Texto de autoria de Ana Carolyna Gonçalves, assistente do Núcleo de Comunicação]
Referências
CAFFÉ, Juliana; GONTIJO, Juliana. Expor o sagrado: o caso do manto tupinambá na exposição Kwá Yepé Turusú Yuriri Assojaba Tupinambá. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 7, n. 2, p. 23–47, 2023. DOI: 10.20396/modos.v7i2.8670562.
COSTA, Caroline Mendes Pinto Rocha da. O retorno do manto tupinambá: diálogos para a construção de uma história da arte indígena. 2022. 59 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História da Arte) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
JESUS DA SILVA, Glicéria. (2022). Arenga Tata Nhee Assojoba Tupinamabá. Tellus, 21, n. 46, p. 323–339. DOI: 10.20435/tellus.v21i46.816.
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