Como evitar preconceitos e estereótipos?
27 de agosto de 2024
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“Alô, mãe
Você sente minha falta?
Porque eu também sinto falta de mim
Alô, mãe
Canta que o corpo transpassa
O tempo e nos faz resistir
Deixei meu cocar no quadro
Retrato falado, escrevo: “Tá aqui”
Num apagamento histórico
Me perguntam como é que eu cheguei aqui
A verdade é que eu sempre estive
(Nos reduzem a índios, mitos, fantasias)
A verdade é que eu sempre estive
(E depois dizem que somos todos iguais)
Vou te contar uma história real:
Um a um morrendo desde os navios de Cabral
Nós temos nomes, não somos números
(Galdino Pataxó, Marçal Guarani, Jorginho Guajajara)
Nós temos nomes, não somos números
(Marcinho Pitaguary, não somos)
Pra me manter viva, preciso resistir
Dizem que não sou de verdade
Que eu não deveria nem estar aqui
O lugar onde eu vivo
Me apaga e me incrimina
Me cala e me torna invisível
A arma de fogo superou a minha flecha
Minha nudez se tornou escandalização
Minha língua mantida no anonimato
Kaê na mata, Aline na urbanização
Mesmo vivendo na cidade
Nos unimos por um ideal
Na busca pelo direito
Território ancestral
Vou te contar uma história real:
Pindorama (território, território ancestral)
Brasil (tekohaw, tekohaw),
Demarcação já no território ancestral”.
(“Território Ancestral”, Kaê Guajajara)
A inserção da temática das histórias e culturas indígenas na formação docente e na prática pedagógica sofreu profundas mudanças com a alteração do Art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394-96 por meio da Lei 11.645/2008, que estabeleceu a obrigatoriedade do estudo desses temas nas escolas de ensino fundamental e médio de todo país. Embora quase duas décadas tenham se passado, o maior desafio para o cumprimento efetivo dessa medida permanece: alcançar uma formação ampla e qualificada de professores. Parte significativa dos docentes do país graduou-se em período anterior à lei de 2008, quando a maioria dos cursos de licenciatura não contemplavam abordagens sobre a temática indígena, a não ser em uma perspectiva restrita ao contexto do chamado “descobrimento” do Brasil. Os livros didáticos e demais materiais pedagógicos adotados pelas escolas, por sua vez, nem sempre oferecem conteúdo sobre a enorme diversidade dos mundos indígenas da contemporaneidade, o que contribui para uma visão estereotipada dos povos indígenas.
Preconceitos e estereótipos sobre os povos indígenas no Brasil são amplamente disseminados em nossa sociedade e refletem a matriz colonial que nos constitui e que historicamente questionou a humanidade dos povos indígenas, associando-os ora à figura do “bom selvagem”, protetor da natureza, ora à condição de primitivismo. Imagens de indígenas do século XVI continuam a ser reproduzidas como se fossem capazes de retratar os povos originários mais de 500 anos depois, congelando os mundos indígenas no passado e reduzindo-os à eterna condição de ancestrais, primitivos e atrasados. “Sou descendente dos índios porque minha avó foi pega no laço”. “Índio que fala português e usa celular não é mais índio de verdade”. “As tribos indígenas atrasam o desenvolvimento do país”. Quantas vezes escutamos frases como essas em nosso cotidiano? Elas refletem preconceitos oriundos do desconhecimento sobre os mundos indígenas e é exatamente para desconstruí-los que medidas como a Lei 11.645/2008 foram criadas.
Existem no Brasil contemporâneo cerca de 300 povos indígenas e aproximadamente 180 línguas. Entretanto, essa enorme diversidade cultural e linguística é pouco conhecida pela população não indígena de nosso país. Como, então, reverter esse quadro? Não restam dúvidas de que a escola é uma ferramenta poderosa para educarmos as novas gerações, desconstruirmos preconceitos a respeito dos povos originários e dar visibilidade à luta do movimento indígena pelo reconhecimento de seus direitos. Embora seja importante conhecer a história da invasão europeia do continente americano e todas as violências impostas aos povos indígenas, é preciso voltar o olhar para os mundos indígenas do presente, conhecer os desafios e problemas contemporâneos por eles vividos e, sobretudo, conhecer também a riqueza e sofisticação dos seus sistemas de conhecimento e seus modos de viver ancestrais, marcados por uma relação de profundo amor à Terra e de respeito e envolvimento com todos os seres que a habitam. A seguir, apresentamos algumas sugestões para inspirar práticas pedagógicas que trabalhem com a temática indígena de forma qualificada.
Em 1943 foi criado o “Dia do Índio” no Brasil, através de um decreto-lei assinado pelo então presidente Getúlio Vargas. A escolha da data está relacionada à primeira reunião do Congresso Indigenista Interamericano, na cidade de Pátzcuaro, no México, em abril de 1940. Em 2022, a data passou a se chamar “Dia dos Povos Indígenas”, com a aprovação pelo Congresso Nacional do projeto de lei 5466/19, da deputada indígena Joênia Wapichana. A mudança teve como objetivo afastar-se da categoria “índio”, que estigmatiza as identidades indígenas de forma genérica, e celebrar o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira, reconhecendo a pluralidade de suas culturas e modos de existir. Além do dia 19 de abril, o dia 09 de agosto também celebra essa diversidade – a data comemora o Dia Internacional dos Povos Indígenas, criado em 1995 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Embora tais datas sejam importantes, por que não incluir atividades sobre os povos indígenas no planejamento das aulas ao longo de todo o ano? Afinal, esse é o objetivo da Lei 11.645/2008, mencionada no início do texto!
Há muitas possibilidades de trabalhar a temática indígena em sala de aula. Que tal estimular grupos de alunos a realizarem pesquisas sobre algumas das 180 línguas indígenas faladas no Brasil? O Projeto de Documentação de Línguas Indígenas (Prodoclin) é uma ampla iniciativa de documentação de línguas indígenas no Brasil, desenvolvida em conjunto com diversas instituições e pesquisadores e financiado através de uma parceria entre a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a Fundação Banco do Brasil e a UNESCO, por meio do Museu do Índio, órgão científico-cultural sediado no Rio de Janeiro. O Projeto criou o Portal Japiim, que abriga dicionários multimídia de algumas das línguas indígenas faladas no Brasil, com verbetes traduzidos para o português que incluem o áudio com a pronúncia do termo na língua indígena e podem ser consultados livremente.
Site Portal Japiim, do Programa de Documentação Linguística (Prodoclin) do Museu do Índio. (Créditos: Reprodução/ Portal Japiim).
Outra fonte qualificada de informação é o site Povos Indígenas no Brasil, mantido pelo Instituto Socioambiental (ISA). Nele, podem ser encontradas informações sobre as línguas indígenas faladas no Brasil e como elas estão classificadas em troncos e famílias linguísticas. Há informações também sobre as Terras Indígenas demarcadas, com mapas que podem ser consultados por região e estado. Que tal estimular seus alunos a pesquisarem quais são as terras indígenas e que povos vivem no seu estado?
É possível ainda aprofundar o conhecimento sobre um determinado povo consultando os verbetes do site. Ao clicar em um dos verbetes, o estudante terá acesso a informações sobre o povo escolhido, agrupadas em temas tais como localização, população, histórico do contato, rituais, cultura material, organização social e política, dentre outros.
Site Povos Indígenas no Brasil, criado pelo Instituto Socioambiental (ISA). (Créditos: Reprodução/ ISA).
O site ainda conta com uma versão Mirim, voltada para crianças, com informações sobre os povos indígenas, jogos e brincadeiras que permitem trabalhar sobre as culturas e histórias indígenas de forma lúdica.
Site Povos Indígenas no Brasil Mirim, criado pelo Instituto Socioambiental (ISA). (Créditos: Reprodução/ ISA).
Ao trabalhar conteúdo sobre os povos indígenas em aula, tenha atenção aos termos e palavras usados. Não use o termo “índio”, que reproduz uma visão colonialista e genérica das identidades e culturas indígenas. “Indígena” é o termo adotado pelo movimento indígena para se referir a pessoas e povos indígenas – a palavra significa “originário da terra” e expressa a relação ancestral com o território em que vivem.
Palavras como “tribo” e “reserva indígena” também estão eivadas de preconceito. Em lugar de “tribo”, que carrega uma conotação de atraso, fale de “povo”; em lugar de “reserva”, utilize “terras indígenas”, “aldeias” ou “comunidades indígenas”.
Respeite a nomenclatura com a qual cada povo se identifica e se reconhece. Dê preferência a atividades em são estudadas as histórias e culturas de povos específicos, evitando generalizações equivocadas tais como “os índios moram na floresta”, “vivem em ocas” e “caçam com arco e flecha”. Consulte o mapa das terras indígenas demarcadas no Brasil e enfatize a presença indígena em todas as regiões, não apenas na Amazônia: há terras indígenas no Cerrado, no sul, na região nordeste do país… os diferentes povos têm suas maneiras próprias de viver, o que implica uma diversidade que não é apenas linguística, mas também nos modos de habitar, na alimentação e em suas visões de mundo.
A oralidade é uma das características centrais dos sistemas de conhecimentos indígenas. Aos olhos ocidentais, a ausência de uma tradição escrita faz com que os conhecimentos indígenas sejam vistos como menores, muitas vezes tratados como superstições, lendas e folclore. Aos olhos indígenas, entretanto, a força de seus saberes está na oralidade. Esses conhecimentos são ensinados oralmente de uma geração a outra, o que demanda técnicas e modos de transmissão muito específicos. Segundo o líder político, xamã e intelectual yanomami Davi Kopenawa, “Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos” (Kopenawa & Albert, 2015).
As narrativas indígenas, portanto, não são histórias fantasiosas, tampouco lendas ou fábulas. Elas constituem corpos de conhecimento complexos e sofisticados que congregam saber acerca do surgimento do universo e de todos os seres que o habitam. No bojo de tais narrativas são transmitidos conhecimentos de botânica, astronomia, matemática, filosofia, história, medicina… conhecimentos que estão fortemente vinculados a práticas e orientam a vida cotidiana. Cabe destacar, inclusive, que os sistemas de conhecimento indígenas não são constituídos apenas pelas narrativas indígenas comumente chamadas de “mitos”. Há uma série de saberes que estão presentes na vida cotidiana e que dizem respeito a práticas tais como a fabricação de instrumentos diversos, como canoas, e construção de casas (que demandam conhecimentos matemáticos, de pesos e medidas, conhecimentos equivalentes a áreas disciplinares como a física, as engenharias), produção e cultivo de alimentos (que envolvem conhecimentos sobre solos, estações do ano e distribuição de chuvas, técnicas agrícolas…), o uso de plantas para cura de doenças, que implica um conhecimento botânico refinado, dentre tantos outros exemplos.
Os saberes indígenas também estão presentes em nossa vida cotidiana, mas infelizmente nem sempre as contribuições oriundas deles são reconhecidas. Você sabia que a estévia, amplamente utilizada como adoçante pela indústria alimentícia, é extraída da planta Stevia rebaudiana, utilizada há muitas centenas de anos pelos povos Guarani que vivem no sul e sudeste do Brasil e no Paraguai? A bióloga Nurit Bensusan (2019) conta a história controversa da estévia, informando que os Guarani utilizavam a estévia para adoçar a bebida preparada com as folhas da erva-mate (também nativa da região) e outras comidas, até que na década de 1970 a planta foi levada para o Japão, onde foi cultivada e pesquisada por uma empresa japonesa que já produzia adoçantes. Uma vez identificado o componente da planta responsável por sua doçura, este passou a ser comercializado na forma do adoçante que hoje encontramos nas prateleiras dos supermercados. Embora seja mencionada a origem sul-americana da planta, não é divulgado que o conhecimento de seu uso veio dos Guarani, que nunca receberam nenhum benefício derivado da comercialização do produto. Em seu livro, Bensusan traz ainda outros exemplos de como vários remédios ao longo da história tiveram sua origem nos conhecimentos dos povos tradicionais, com pesquisas da indústria farmacêutica sendo realizadas a partir do uso que povos indígenas e outras comunidades tradicionais fazem da biodiversidade. Estimule seus alunos a buscarem outras informações interessantes como esta!
Diversos povos indígenas adotaram o português como primeira língua ao longo do processo colonizador, sem deixar de lado sua identidade e cultura. Os mundos indígenas, tanto quanto o mundo não indígena, passam por transformações históricas, sem perder suas especificidades. Já parou para pensar que você não vive como vivia sua bisavó? Por que achar então que os mundos indígenas devem permanecer congelados no tempo? A própria língua portuguesa falada no Brasil está permeada de palavras e expressões tomadas de empréstimo de diversas línguas indígenas e africanas, ao longo do processo de colonização. Também incorporamos tecnologias, saberes e invenções destes povos e de tantos outros, sem deixar de nos reconhecermos como legítimos brasileiros. Da mesma forma, ser indígena não se resume a estar nu ou vestido, usar cocar ou pintar o corpo. Ao invés de fantasiar as crianças com indumentárias supostamente indígenas, que tal desenvolver atividades que demandem uma pesquisa sobre povos específicos, suas práticas alimentares, suas histórias? Que tal conhecer os mundos indígenas do presente?
O projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1986 com o objetivo de fortalecer as identidades e culturas indígenas através do uso de recursos audiovisuais, ao longo de sua existência passou a atuar na formação de cineastas indígenas, que se apropriaram da tecnologia para produzir filmes em que apresentam um pouco da beleza de seus mundos, bem como sua luta pelo reconhecimento de direitos. O projeto conta com uma videoteca com inúmeros títulos, de curta, média e longa duração, para públicos de todas as idades. Além do site da internet, o Vídeo das Aldeias mantém um canal no YouTube onde alguns vídeos podem ser acessados gratuitamente.
Site do projeto Vídeo nas Aldeias. (Créditos: Reprodução/ Vídeo nas Aldeias).
Há uma produção crescente de livros de autores indígenas, voltados para leitores de diversas idades. Assim como na produção de filmes, autores indígenas apropriam-se da escrita para contar histórias que podem ser lidas por um grande número de pessoas e que são narradas dos pontos de vista indígenas. Segundo a escritora Julie Dorrico (2021), do povo Macuxi, “Escrever para crianças e jovens é um ato político dos autores indígenas, pois desmistificam desde cedo imagens pejorativas desses povos”.
A lista de livros de autoria indígenas é extensa e vamos sugerir aqui apenas alguns títulos. Que tal aumentar essa lista e criar uma seção de autores indígenas na biblioteca da sua escola?
“Nós: uma antologia de literatura indígena”, diversos autores (Companhia das Letrinhas).
“O povo Kambeba e a gota d’água”, Márcia Kambeba (Edebe).
“Um sonho que não parecia sonho”, Daniel Munduruku (Caramelo).
“Contos da floresta”, Yaguarê Yamã (Peirópolis).
“A boca da noite”, Cristino Wapichana (Zit).
“Meu lugar no mundo”, Sulami Katy (Ática).
“Awyató-pót: histórias indígenas para crianças”, Tiago Hakiy (Paulinas).
“Txopai e Itôhã”, Kanátyo Pataxó (Formato).
“Contos indígenas Kariri Xocó”, Denízia Cruz (SESC).
“Coração na aldeia, pés no mundo”, Auritha Tabajara (U’ka Editorial).
“Eu sou Macuxi e outras histórias”, Julie Dorrico (Caos e Letras).
“Flor da Mata”, Graça Graúna (Peninha Edições).
Além dos autores indígenas, finalizamos nossas sugestões com a produção musical de artistas indígenas do Rap. Sim, há no Brasil um número crescente de Rappers indígenas! A música “Território Ancestral”, cuja letra abre esse texto, é de autoria da Rapper indígena Kauê Guajajara. Além dela, artistas como os Brô Mc’s, do povo Guarani Kaiowá, Katú Mirim, do povo Bororo e Wescritor, do povo Tupinambá, dentre outros, têm movimentado a cena musical contemporânea. Com músicas que reverenciam os mundos indígenas e tratam da luta histórica por reconhecimento, a produção destes artistas merece ser conhecida e apreciada! Recentemente, foi criado o selo musical Azuruhu, dedicado a dar visibilidade a artistas indígenas através da produção independente. No canal do selo no YouTube você pode conhecer um pouco da produção musical da Música Popular Originária (MPO), que vai além do Rap, contando com outros estilos e artistas. Graças à iniciativa do selo, em agosto de 2024 a União Brasileira de Compositores (UBC) criou uma nova categoria no seu cadastro de obras. Agora já é possível selecionar “idioma indígena do Brasil” na hora de fazer o cadastro, uma antiga demanda de artistas que cantam em outras línguas brasileiras que não o português. Celebre essa conquista ouvindo músicas de artistas indígenas!
[Texto de autoria de Karenina Vieira Andrade, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG e coordenadora do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade do Espaço do Conhecimento UFMG]
Referências
BENSUSAN, Nurit, 2019. “Do que é feito o encontro”, Brasília: IEB/Mil Folhas.
DORRICO, Julie, 2021. “Folclore brasileiro versus literatura indígena: entenda a diferença”. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julie-dorrico/2021/08/25/folclore-brasileiro-versus-literatura-indigena-entenda-a-diferenca.htm. Acesso em: 14 de ago. de 2024.
KOPENAWA, Davi & Albert, Bruce, 2015. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras.
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