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Um Lado de um Dado: A Origem do RPG

O processo de desenvolvimento de jogos de interpretação e como eles funcionam

 

04 de fevereiro de 2025

 

Por Eve Mota Reis,

estudante do curso de Letras e bolsista do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade

 

A arte como expressão dos sentidos, evidenciada pelas pinturas e gravuras rupestres, é tão antiga e entrelaçada à vida humana quanto o instinto de caça e proteção. É possível dizer que a arte humana se desenvolvia em conjunto com os novos recursos que o ser humano aprendia a manipular, seja por meio de materiais físicos ou da própria linguagem. Histórias de origens cosmológicas em diferentes culturas eram passadas oralmente entre gerações, prática que decantou na arte teatral por todo o mundo. A interpretação de histórias, fictícias ou não, tornou-se uma das formas de expressão artística mais prestigiadas da humanidade. Atores e espectadores imersos no universo apresentado, o uso de cenários, maquiagem e figurinos faziam e ainda fazem parte desses espetáculos.

 

Gary Gygax, nascido no dia 27 de julho de 1938, em Chicago (EUA), cresceu com jogos de estratégia militar, nos quais ele e seus amigos recriavam batalhas reais com desenhos de mapas e bonecos. Dave Arneson, nascido em 1° de outubro de 1947, no estado de Minnesota (EUA), conhece o mundo dos jogos de estratégia em sua adolescência. A vida dos dois se conecta em 1969, quando Gygax e Arneson se conheceram pela primeira vez na GenCon, uma convenção de jogos de tabuleiro. Por meio de discussões apaixonadas sobre jogos de batalhas navais e militares, eles desenvolveram o jogo Don’t Give Up The Ship! (Não Desista do Barco!), publicado em 1971 pela Guidon Games. Na época, o uso de bonecos em miniatura para jogos de batalha era um dos jeitos mais comuns de entrar em contato com universos fictícios, e Gygax havia produzido com Jeff Perren o jogo ChainMail, que usava esses bonecos e situava as batalhas em ambientes inspirados na era medieval e na antiguidade europeia, misturados com dragões, hobbits, elfos, goblins e outros elementos semelhantes às histórias de Senhor dos Anéis de Tolkien e Conan, o Bárbaro, de Robert E. Howard. 

 

Chain Mail, de Garry Gygax e Jeff Perren. (Créditos: Reprodução/Guidon Games).

 

Ainda no começo dos anos 70, Arneson havia desenvolvido outro jogo, BlackMoor, considerado o protótipo do que viria a se tornar Dungeons & Dragons. BlackMoor introduziu aos jogos de estratégia a possibilidade de escolha entre diferentes ações no combate, os sistemas de pontos de dano que os personagens podem perder ou causar e o avanço de níveis dos personagens, com o uso de distribuição de pontos de experiência. Mesclando BlackMoor com ChainMail e expandindo suas regras por três anos, Dungeons & Dragons nasce oficialmente das mentes de Gygax e Anderson. 

 

Capa do livro Dungeons & Dragons, por Gygax e Arneson. (TSR, Inc., 1974).

 

Em sua essência, um jogo de RPG (Role Playing Game, ou jogo de interpretação de papéis) envolve dois ou mais jogadores interpretando e escolhendo as ações de seus personagens, improvisadamente, em um universo fictício narrado e controlado pelo Mestre do jogo. Essas ações, porém, tem seu sucesso ou não ditado por meio do resultado de uma rolagem de dados, dando um quê imprevisível para o jogo. Cada sistema tem seu próprio conjunto de regras, sistema de pontos e atribuições para os personagens, estéticas e objetivos. Em uma versão mais básica, tudo que é necessário para jogar RPG é papel, um lápis e muita imaginação. Diferente dos jogos de tabuleiro e videogames, a ambientação e construção do universo do jogo é feito pelo Mestre, que planeja e narra toda a história para os jogadores, descrevendo o enredo, o ambiente em que os personagens se encontram e suas possibilidades de movimentos, ações e interações com o mundo – tudo isso pela fala e interpretação. A necessidade da imaginação é o que possibilita o uso do RPG em contextos diversos, como na área da educação, atividades terapêuticas e de treinamento de improvisação teatral e militar.

 

Possibilitando explorar a personalidade e as linhas tênues das emoções humanas, o RPG abre um espaço livre de consequências no mundo real para seus jogadores, os colocando em situações nas quais diferentes resoluções se aplicam: desde a diplomacia e a conversa até outras medidas mais dramáticas. Ao entender como o trabalho em grupo funciona e pensando em formas de combinar suas habilidades para enfrentar os desafios, os jogadores aprendem a balancear seus pontos fortes e fracos e a discutir de maneira pacífica possíveis resoluções. 

 

Imagine agora que você está correndo por uma floresta, densa e diversa, com flores, frutas e árvores tão altas que mal consegue ver seus topos. Você, um guerreiro da corte real, junto de seus companheiros, desvia rapidamente de troncos e pedras no caminho, ouvindo os barulhos de inimigos correndo em sua direção, seus gritos cheios de fúria e ameaças cada vez mais perto só aumentam sua preocupação. Parando para respirar à beira do rio, você e seu grupo são surpreendidos por uma ponte o atravessando. A ponte, porém, estava claramente velha, suas peças de madeira escuras e esburacadas, amarradas por algumas cordas amareladas se desfazendo. Seu grupo precisa escolher o que fazer, ficar e lutar contra os inimigos ou atravessar a ponte velha. O que vocês fazem? Esse é um tipo de narração e situação que jogadores de RPG podem encontrar em seus jogos. A partir daqui, existem múltiplas possibilidades de resolução: um dos personagens pode ter um poder que ajudará na batalha contra os inimigos; o outro pode ter uma mágica que deixaria a ponte forte para aguentar a travessia do grupo; outro pode tentar uma discussão diplomática com os inimigos ou até mesmo criar uma bolha mágica que os levita magicamente até o outro lado do rio… 

 

Em um espaço no qual a interação é necessária e encorajada, a análise de uma situação sem nenhum vínculo ou repercussão no mundo real faz com que os jogadores possam explorar partes de suas próprias personalidades em relação a outras pessoas, excluindo o peso de estar exercendo um papel social imposto para si. Esse exercício contínuo de interpretação, interação e exploração, por meio de outras identidades – os personagens -, ajudam na construção da autoconfiança, do raciocínio e da criatividade necessários para lidar com situações da vida real que precisem de um olhar diferenciado ou “fora da caixa”.

 

Como mencionado, o RPG pode ser usado como uma ferramenta pedagógica, em espaços de educação formal e informal. No cenário escolar, o jogo pode ser introduzido como atividade complementar, com o intuito de apresentar conteúdos de forma lúdica. Baseando-se nas teorias de desenvolvimento de Vygotsky (1896-1934), por exemplo, há um espaço de desenvolvimento entre conhecimentos que a criança já domina e pratica sozinha e os que ela ainda depende do auxílio. Assim, o RPG pode ser uma boa alternativa para desenvolver estes conhecimentos entre os alunos, em um espaço no qual irão interagir e trocar experiências.

 

Já em museus, o RPG pode tomar um papel educativo e prazeroso ao mesmo tempo. Na oficina RPG no Museu, os visitantes se tornam um grupo de pesquisadores em uma visita ao Espaço de Conhecimento UFMG, quando, de repente, são teletransportados para uma floresta, cheia de vida, animais pastando, pássaros cantando e árvores abundantes de frutos e flores. O desafio é descobrir onde eles estão e como voltar a sua realidade, trabalhando juntos.

 

A última edição da oficina foi realizada em 1º de fevereiro de 2025, inspirada pela exposição “demasiado humano“. Siga o Espaço do Conhecimento nas redes sociais para ficar por dentro das próximas oportunidades de participação!

 

Oficina RPG no Museu, realizada pelo Espaço do Conhecimento UFMG. (Créditos: Divulgação/Espaço do Conhecimento UFMG).

 

Para saber mais:

Dungeons & Dragons.

BOWMAN, S. L. The Functions of Role-Playing Games: how participants create community, solve problems and explore identity. Jefferson: McFarland & Company, 2010. 216 p.

SCHMIT, W. L. RPG e Vigotski: Perspectivas para a Prática Pedagógica. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2007.