5Cs e VC

Nesse espaço, você poderá interagir por meio de opiniões, ideias, conhecimentos, saberes e experiências sobre o ensino de graduação! Pra começar, leia o texto abaixo, disponível no Boletim UFMG e PARTICIPE!

Não SABER é o mais ÍNTIMO

Marcos Vinicius Bortolus*

“Yo he preferido hablar de cosas imposibles
porque de lo posible se sabe demasiado”
Silvio Rodriguez

Gostaria aqui de sugerir que a UFMG, por meio de suas pró-reitorias de Graduação, de Extensão, de Pesquisa e de Pós-Graduação em conjunto com o Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) organize não uma Semana do Conhecimento, mas uma Semana da Ignorância. A seguir exponho motivos e objetivo desta empreitada.

Quanto mais avançado o ensino das ciências, mais ele mostra as suas fissuras e defeitos, e quanto mais avançadas as pesquisas científicas, mais perto das fronteiras do desconhecido elas se encontram (prefiro dizer fronteiras do desconhecido que fronteiras do conhecido, pois é o desconhecido que nos atrai). Por outro lado, as divulgações dos resultados dos estudos científicos para o público em geral se dão quase que no campo assertivo. A ciência passa de um campo povoado por dúvidas e incertezas para um ambiente de falsas certezas, caminha de um mar revolto e turbulento para um lago artificialmente tranquilo. As ciências se transformam em seres que acalmam as águas, que nos livram do caos (não se esqueçam daquele que viaja nos redemunhos).

O resultado disso é que as ciências se veem privadas de sua humanidade. Em vez de dialogarem entre si, os homens precisam buscar entender, acessar os discursos, os debates das vaidosas divindades. Acredito que, no sentido de se tentar tornar o diálogo entre os homens e os homens das ciências mais simétrico e colaborativo, uma mudança de atitude deve acontecer antes. A partir do conto Zen que transcrevo abaixo, pode-se vislumbrar um caminho para esta mudança.

O mestre zen Hogen estudou com Keishin Zenji. Uma vez, Keishin Zenji lhe perguntou: “Joza, para onde vais?” Hogen respondeu: “Estou numa peregrinação sem objetivo”. Keishin perguntou novamente: “Qual a razão da sua peregrinação?” “Não sei”, replicou Hogen. E Keishin disse: “Não saber é o mais íntimo”. Hogen de repente alcançou grande iluminação.
A intimidade é algo que, nas relações, pode se referir a muitos aspectos, como a intimidade de alguém consigo mesmo ou com algum objeto, ou ainda com a natureza. Aqui vamos nos prender ao seu sentido nas relações entre as pessoas.

As nossas relações e consequentes possibilidades de intimidade são, de acordo com o biólogo chileno Humberto Maturana, determinadas pelas nossas emoções. O que as nossas emoções fazem é especificar como estamos no domínio relacional e como estamos em nossa corporalidade. “…O que as emoções fazem é mudar quem somos, realçar o que podemos fazer, restringir ou expandir nossa visão… A diferença não está no conhecimento possível. A diferença está no conhecimento disponível.”

O nosso comportamento criativo, a disponibilidade do nosso potencial e as nossas possibilidades de projetos colaborativos são determinados pela emoção. As relações de poder, a existência de fortes níveis hierárquicos na comunidade universitária e a falsa dicotomia entre o conhecimento científico e o tradicional interferem nos nossos espaços relacionais favorecendo emoções que restringem a visão das pessoas, impedem o desenvolvimento de projetos colaborativos, de novos conhecimentos e a aceitação de saberes oriundos de outras tradições.

Neste caso a relação se torna ainda mais ruinosa, pois é muito frequente supor-se que a forma de produção de conhecimento científico seja o apogeu de um processo de evolução das formas de produzir conhecimento na história da humanidade. Certamente um subproduto da visão evolucionista na antropologia.

A proposta do Ieat de abordar a transdisciplinaridade a partir de pesquisas e estudos no estado da arte do conhecimento é necessária. Penso, porém, que ela não é suficiente. A nossa atitude no limite do conhecimento deve mudar: não saber é o mais íntimo.

Um sistema acadêmico é baseado em conjunto de saberes e dizer que não saber é o mais íntimo pode parecer muito estranho, mas estou simplesmente propondo que uma cultura sem propósitos definidos a priori e sem hierarquia seria uma cultura transdisciplinar. De maneira alguma isso quer dizer para as pessoas que elas devem esquecer os seus conhecimentos; quer dizer que os seus conhecimentos e as suas habilidades vão entrar numa roda em que não há hierarquia nem área de conhecimento privilegiada, onde possam acontecer efetivamente diálogos de saberes no sentido igualitário e simétrico.

O exercício da transdisciplinaridade passa pelo trabalho de nossas emoções nas relações, mais especificamente pela emoção de aceitação do outro e, deste modo, de seu saber como legítimo na construção coletiva de outros saberes. Tal construção é uma atividade criativa e a transdisciplinaridade, um exercício de criatividade.

O objetivo da organização da Semana da Ignorância seria exatamente este: estreitar os laços da universidade com a comunidade. Uma primeira mudança de atitude no sentido de se romper com a ideia narcisista e evolucionista de ciência. Apresentaríamos as dúvidas, as incertezas e as limitações dos conhecimentos científicos em diferentes áreas do saber e as implicações disso na utilização desses conhecimentos em diferentes atividades da sociedade.

Sugiro como símbolo desta empreitada uma imagem tirada do alto da Praça de Serviços da Universidade que lembra uma ferradura quebrada e que efetivamente possui estrutura metálica. Não seria a intenção utilizar a simbologia para trazer sorte ao empreendimento ou fazer alusão a um animal acusado injustamente de ignorante. Apenas uma lembrança de Johann Wolfgang von Goethe, para quem os fenômenos da natureza deveriam ser percebidos e estudados na sua totalidade e complexidade. Goethe escreveu a Lenda da Ferradura, que termina assim: “Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga, tarde por muito menos se afadiga”.

* Professor da Escola de Engenharia

3 comentários sobre “5Cs e VC

  1. Professor Marcos Vinicius,.
    Sou professora universitária de cursos de graduação em Enfermagem (rede privada de ensino
    ) há 14 anos e compartilho com você da mesma opinião e pode-se dizer, da mesma angústia. Leciono um conteúdo teórico sobre interdisciplinaridade e percebo o quanto não sabemos trabalhar e pensar o inter e transdisciplinar.
    No campo acadêmico, professores não se preocupam e nem têm tempo para, eficientemente, pensar e planejar ações e projetos interdisciplinares cujo objeto de aprendizado seria o aluno.
    Trata-se de um ‘manto invisível’ sob o qual todos nós estamos, confortavelmente, escondidos e protegidos com os discursos de projeto interdisciplinar, atividade integradora, aprendizado significativo, metodologias ativas de ensino e outros…
    O trabalho docente, em muitas ocasiões, é individual, solitário, incerto, experimental… muito mais dúvidas e medos do que acertos e evidências. Porém, fazendo analogia com suas ideias, escondemos nosso íntimo porque afinal, professor não pode se expor para seus pares; muito menos assumir para a comunidade acadêmica que é um ser inacabado.

  2. Caro Professor Marcos, parabéns pelo texto!
    É uma grande proposição a sua!
    Dois obstáculos, porém, poderão nos demover desta proposta, a saber: nosso orgulho e nossa incapacidade de lidar com nossa ignorância. Somos, todos nós, muito bons para colocarmo-nos em exposição. Somos altivos e sequer conseguimos ver nossas mazelas e deficiências. Quando as descobrimos, as escondemos rapidamente – não as tratamos e não as apresentamos; consequência: estamos presos à ignorância. A mudança deve começar conosco, professores, ainda envoltos no nosso narcisismo.

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