Luciana Diniz Silva, do Departamento de Clínica Médica.
Foto: Taniara Damascena – IEAT/UFMG

Na última quarta-feira, 2 de julho, o IEAT foi palco da apresentação do projeto “Análise Histórica, Cultural e Social da Imagem Corporal”, liderado pela Profa. Luciana Diniz Silva, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. A iniciativa integra o programa de Residência do IEAT e busca investigar, sob uma perspectiva transdisciplinar, como a construção social do corpo — em especial a noção de “corpo padrão” — se consolidou ao longo do século XX, entre os anos de 1911 e 1949, a partir do acervo do Centro de Memória da Medicina (Cememor).

O projeto articula história, ciências da saúde, filosofia e artes para analisar criticamente como as práticas médicas, o ensino da anatomia e o avanço científico no Brasil estiveram imersos em discursos eugenistas que, até hoje, reverberam na formação dos profissionais de saúde e na representação dos corpos nos espaços acadêmicos. Segundo a pesquisadora, a hipótese central é que as ideias e estruturas conceituais eugenistas, profundamente presentes na formação médica do século XX, moldaram padrões normativos de beleza, saúde e identidade corporal, silenciando a diversidade étnica e de gênero.

Durante a apresentação, a professora Luciana destacou que a motivação para o projeto surgiu em meio à pandemia de COVID-19, um período que a impactou profundamente, tanto pessoal quanto profissionalmente. “A pandemia me fez refletir sobre o corpo como território político, simbólico e histórico. Ela escancarou desigualdades, expôs os limites da medicina tecnicista e aprofundou a invisibilidade de determinados corpos”, afirmou. Foi nesse contexto que se fortaleceu seu compromisso com a pesquisa transdisciplinar, abordagem que considera essencial para compreender as complexas interações entre ciência, saúde, sociedade e subjetividade. “Somente pela transdisciplinaridade podemos construir respostas éticas, inclusivas e transformadoras para os desafios contemporâneos”, completou.

A equipe do projeto reúne docentes, pesquisadores e estudantes de diferentes áreas do conhecimento. Participam da iniciativa o professor Eugênio Paccelli da Silva Horta (Artes Visuais – Escola de Belas Artes), a professora Rita Marques (História), o professor Luciano Amédée Péret Filho (Pediatria), o professor Kennedy Martinez de Oliveira (Anatomia), a bibliotecária Ráisa Mendes Fernandes de Souza, a historiadora Ethel Mizrahy Cuperschmid e os estudantes Aline Marcos Pires (doutoranda em Nutrição), Lucas Carreira Nunes e Leonardo Barcelos Carvalho (graduação em Medicina), além de Vanessa Fernandes de Nobrega e Guilherme Orzil Rosa (graduação em Artes Visuais – Escola de Belas Artes).

Entre os eixos centrais do projeto está a análise crítica de representações corporais em atlas anatômicos e livros médicos do Cememor. Muitas dessas imagens, segundo a professora, reproduzem padrões eugênicos e excluem corpos racializados e femininos. “Fiquei chocada ao descobrir que muitos dos atlas usados historicamente foram construídos a partir de corpos de prisioneiros de campos de concentração. Até hoje, nossos estudantes de medicina não encontram representações de corpos negros ou femininos nos livros que utilizam para estudar anatomia”, relatou Luciana.

Além da pesquisa documental, o projeto aposta na integração entre ciência e arte para promover uma reflexão sensível e plural sobre o corpo. Um exemplo dessa proposta é a exposição “Arte, História e Saúde: Museu como Conexão para a Transdisciplinaridade”, idealizada pela estudante Thâmara Cunha Carvalho, do curso de Artes Visuais. A mostra incluiu um memorial em homenagem às vítimas da COVID-19, permitindo que os visitantes ofertassem flores em reconhecimento àquelas que perderam a vida durante a pandemia.

Outro destaque da apresentação foi o debate sobre a “invisibilidade do corpo” na prática médica contemporânea. Para a professora, o foco exclusivo na doença frequentemente desumaniza o cuidado. Nesse sentido, o projeto também desenvolveu oficinas e dinâmicas com pacientes, como as realizadas em ambulatórios de nódulos hepáticos, nas quais os participantes foram convidados a desenhar seus órgãos ou a forma como percebem a própria condição de saúde. Um dos relatos mais simbólicos foi o de um paciente que desenhou uma borboleta ao se referir ao fígado, dizendo: “Eu cortei isso aqui porque eu sinto que o que tenho dentro do meu fígado é uma borboleta. Algo que se transforma, voa e vai embora”.

Para a professora Luciana, essas iniciativas demonstram que o cuidado em saúde vai além dos exames e diagnósticos técnicos. “Quando o paciente se expressa e se vê como parte do processo, ele esquece o ambiente médico tradicional. A consulta deixa de ser apenas um ato clínico e passa a ser um espaço de escuta, expressão e transformação”, destacou.

A valorização do olhar humanizado e atento ao paciente é um dos pilares metodológicos do projeto, que também explora a herança histórica de discursos eugenistas no Brasil. Um dos objetos de análise é a obra “A Cura da Fealdade” (1923), de Renato Kehl, defensor da eugenia no país, que tratava a feiura como uma suposta “doença” a ser combatida. Segundo a professora, compreender o impacto dessas narrativas é fundamental para refletir sobre a busca atual por padrões corporais excludentes e seus efeitos sociais e psicológicos.

O projeto desenvolvido no IEAT representa um esforço inovador para repensar a formação em saúde sob uma perspectiva transdisciplinar, crítica e sensível à diversidade. Ao promover o diálogo entre diferentes saberes e ao aproximar ciência, arte e história, a iniciativa contribui para a construção de práticas médicas mais inclusivas, humanas e socialmente responsáveis.