Afirmar que cariocas são “fechados” se comparados aos “abertos” mineiros não é, certamente, do senso comum. Mas quando se trata de música, ao menos um especialista não duvida do fato: o violonista e professor da Escola de Música da UFMG Fábio Adour. Ao analisar as repercussões da edição 2009 do Festival de Inverno, esse discípulo de Turíbio dos Santos, com quem iniciou seus estudos de violão erudito, sinalizou, em entrevista dada à assessoria de imprensa do evento, aspectos pouco observados pelos mineiros sobre seu “ethos” musical: tradição não é o único alimento da turma das montanhas. Conheça as impressões e análises do especialista, que coordena este ano a área de artes musicais do Festival: Como a tradução está sendo abordada nas oficinas da área de artes musicais? Há em Diamantina reconhecida tradição musical. Como isso influencia o Festival de Inverno da UFMG? Como a música pode interagir com as outras artes e de que modo esse movimento encontra alguma expressão no Festival?
A música é sempre trabalhada com algum tipo de tradução, a começar pela partitura: ninguém acredita que a esteja tocando fielmente, pois é interpretada de forma diferente por cada um. A proposta de uma das oficinas, a do professor Carlos Alberto Figueiredo (Salve Regina, de Lobo de Mesquita – Trajetória de uma obra), é criar um guia para a partitura, para o meio e para a voz. As aulas tratam de uma peça do compositor Lobo de Mesquita, de Diamantina. Os alunos estão produzindo uma tradução moderna para o manuscrito de Salve Regina. A oficina do professor Mauro Rodrigues (Arranjo e transcrição) é voltada para a música popular e para a transcrição. A música popular é muito difícil de ser aprendida por ouvido, o que origina o hábito de escrever partituras. Mas a partitura sempre origina um nível de tradução e uma contraposição ao arranjo. Muitas vezes os músicos não sabem sequer dizer se o manuscrito é um arranjo ou uma transcrição: o arranjo cria uma roupagem para o original e a transcrição pode ser feita em cima do arranjo feito por outra pessoa. Esse limite está sendo trabalhado nas aulas. Existe ainda a oficina do Alexandre Jaques Eisenberg (Composição: ressignificando o passado), que traz obras do repertório ocidental - do barroco, por exemplo, e as transforma em obras modernas. A quarta oficina (Música eletrônica), do João Pedro Oliveira, integra o conjunto das Oficinas Intermidiáticas e pretende promover trabalho interdisciplinar com as outras áreas do Festival. São ações utilizando os sons de Diamantina – músicas e sons da vida urbana –, que serão traduzidos em música eletrônica. Essa oficina fará uma integração com a de Lobo de Mesquita, por meio da leitura e gravação de Salve Regina, executada pela Orquestra Jovem de Diamantina. Sugeri aos professores que façam esse trânsito com Lobo de Mesquita e tentem montar, para o final do Festival, uma mostra com todas essas traduções.
Duas oficinas estão muito ligadas a essa preocupação com a tradição musical de Diamantina: a Música eletrônica e a Salve Regina, de Lobo de Mesquita – Trajetória de uma obra. A primeira busca a memória sonora da cidade, não só antiga, mas a contemporânea, e tenta ouvir a cultura oral da cidade e da região para originar um diálogo; e a segunda trabalha com um compositor local. A música instrumental é uma realidade muito presente aqui em Diamantina e o Festival tem sempre aproveitado os grupos locais, como o Iukerê. Além disso, muitos alunos das oficinas de música são de Diamantina. Às vezes, é difícil criar uma troca entre a oficina e a cidade, pois a maioria dos professores não conhece o lugar ou veio pela segunda ou terceira vez. Eu mesmo, na primeira vez em que vim, não tinha informações sobre essa realidade de Diamantina. Geralmente, é o coordenador de área que propõe essa convergência. A cidade exerce de fato influência sobre o evento. Porém, há algo aqui sendo transformado por uma Minas Gerais mais aberta e mais ampla – não diria apenas Diamantina. Na verdade, vejo uma grande diversidade estética aqui e no estado. Em 2004, fiquei impressionado com a abertura das pessoas, em comparação ao Rio de Janeiro: os músicos que atuam na capital fluminense são mais fechados e o cenário musical em Minas funciona de forma diferente. É o caso do Iukerê, que sofreu influência significativa do Uakti.
O Festival de Inverno foi planejado a partir de uma interação das artes. Nem sempre, no entanto, isso é possível, pois o desconhecimento a respeito do trabalho de todos os artistas e professores dificulta criar uma convergência funcional. Para o futuro, pretende-se propor essa vinculação por meio do resultado final do trabalho das áreas: som, imagem, dança e texto. Pensa-se muito na convergência via espetáculos, mas essa não é a única forma. Acredito que há lacunas nessa interação mais no processo de criação, e não apenas nos produtos finais. A culpa provavelmente é das próprias especialidades. Utilizo diversos processos matemáticos na composição, e isso proporciona uma relação forte com espaço e imagens, pois a música é facilmente transformada em gestos, imagens e aspectos materiais. Exemplificando, o professor Rodrigo Minelli, coordenador da área de Artes Visuais II do Festival, ministra uma oficina de artes locativas das três dimensões que poderia ser relacionada com música. Cena, artes plásticas e música são três elementos cuja interferência mútua é muito fácil de imaginar, até porque incorporam expressões sensoriais uns dos outros.