A pesquisa sobre as ideias e a obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche deve partir do esforço de reconstrução do contexto em que surgiu sua filosofia, no século 19, considerando textos e autores que o inspiraram e que lhe serviram de interlocutores. Essa é a convicção do professor da Fafich Rogério Lopes, que coordena o Grupo Nietzsche de pesquisa na unidade. Lopes atuará esta tarde como debatedor de apresentação do italiano Domenico Losurdo, que lança diversos livros no Brasil e que vai abordar na UFMG a obra Nietzsche: o rebelde aristocrata, de 2002, que ganhou ano passado edição brasileira pela Revan, com tradução de Jaime A. Clasen. O evento terá início às 15h, na sala de teleconferências da Faculdade de Educação (FaE). Lopes discorda de Domenico Losurdo, por exemplo, quando ele contesta o mito de que a irmã e herdeira do material inédito de Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche, teria trabalhado para aproximá-lo das posições antissemitas e nazistas. “Losurdo afirma que editores, tradutores e intérpretes de Nietzsche orquestraram o que ele chama de hermenêutica da inocência, com o intuito de transferir para a irmã de Nietzsche a responsabilidade pela assimilação nazista e antissemita de sua filosofia”, diz Rogério Lopes. O pensador italiano considera que não houve manipulação por parte dela. Na visão do pesquisador da Fafich, o equívoco de Losurdo está em que estudiosos sérios jamais difundiram esse mito. A acusação mais consistente contra ela é a de ter promovido edições da obra de Nietzsche partindo de critérios pouco científicos. “As edições não seguiram critérios cronológicos, e textos foram divididos de forma leviana. Criou-se a ilusão de uma obra póstuma”, explica Lopes, que fez doutorado no Brasil e na Alemanha sobre as fontes do ceticismo na filosofia de Nietzsche. O pesquisador explica que, para Losurdo, o enigma proposto pelo fenômeno Nietzsche só pode ser decifrado pela chave política, e sua filosofia estaria a serviço de um reacionarismo que o fazia porta-voz das classes dominantes. “O esforço de contextualização que o livro promete se transforma em decepção, uma vez que Losurdo tenta mostrar a obra de Nietzsche como mero reflexo de disputas políticas e ideológicas e de interesses de classe”, diz Rogério Lopes. Sem ‘tremor’ “Me sinto feliz de fazer pesquisa sobre Nietzsche no Brasil, onde se produziram textos como o de Antonio Cândido, que em 1946 fazia análise objetiva da obra do filósofo, batendo-se contra a interpretação nazista e mostrando o que de fato era interessante em Nietzsche”, continua. O Grupo Nietzsche foi criado há cerca de um ano pelo próprio Rogério Lopes, e reúne quinzenalmente graduandos e pós-graduandos que apresentam seus trabalhos e analisam juntos textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Lopes defende que o grupo, depois de um século de “muito barulho e disputa ideológica em torno de Nietzsche”, analise questões suscitadas por sua obra tendo em vista “o horizonte histórico que confere sentido e inteligibilidade para suas questões”. Ainda segundo ele, essa preocupação deve estar aliada à “atenção às estratégias retóricas de Nietzsche, que é extremamente provocativo, para que se entendam suas altas pretensões para a filosofia”.
Segundo Rogerio Lopes, o livro de Losurdo – professor de história da filosofia na Universidade de Urbino “Carlo Bo”, na Itália – retoma recepção de Nietzsche pelo marxismo, que considera o filósofo precursor espiritual do nazismo e do fascismo, e apenas busca corrigir a estratégia dessa argumentação. O italiano defende que o marxismo se engana ao interpretar Nietzsche no contexto do século 20. "Mas ele nos oferece análise baseada no contexto sociopolítico, em vez de partir do debate intelectual em que o filósofo esteve inserido", afirma Lopes.
Lopes ressalta que Losurdo é muito bem-vindo, embora traga um debate que o professor da UFMG pensava estar superado, e ele considere que o livro é produto de traumas da história europeia do século 20. “É ótimo constatar que a exposição de ideias de qualquer gênero não causa tremor na pesquisa brasileira sobre Nietzsche. Já temos uma tradição que nos permite, com sobriedade, identificar premissas que conduzem às diversas interpretações”, destaca Rogerio Lopes.