Brigida Campbel |
Desde ontem, artistas de Brasil, Argentina, Nicarágua, Egito, Holanda, França e Ilhas Comores, na África, discutem, em Belo Horizonte, as interfaces de uma das mais antigas e perenes formas de representação – o desenho – com as mídias contemporâneas. O evento, que vai até 25 de julho, contará com workshops, palestras, mesas-redondas, lançamento de livro e um ateliê coletivo. Intitulado simplesmente de Desenho, o evento tem como um dos seus organizadores o professor Marcos Hill, da Escola de Belas-Artes. Nesta entevista ao Portal da UFMG, ele aborda a importância do conhecimento propiciado pelo desenho, relacionado “com tudo aquilo que o ser humano não pode fazer sem passar pela imagem”. É possível estabelecer uma plataforma para experimentações entre o desenho e outras mídias? Em que bases essa plataforma deve ser construída? Um dos workshops pretende discutir a representação da paisagem não só no sentido "natural" ou 'ambiental', mas também em termos de significação sociocultural. Como se dará essa discussão? Outro workshop defenderá a ideia de que o desenho se desprenda da pessoa que o executa e ganhe, digamos, vida e identidade próprias. Como isso acontece?
Como avalia o atual estágio da pesquisa e investigação científica em torno do desenho?
Quando leio o adjetivo “científica” nesta pergunta, sinto certo estranhamento. Talvez por detectar certa tendência, no nosso atual meio acadêmico, de somente legitimar a produção do conhecimento através de dispositivos que o avalizem a partir de referenciais científicos específicos. Aí abre-se uma discussão sobre o que é ser científico. Sem querer com isso me desviar do conteúdo principal da pergunta, estou, sim, tomando um posicionamento crítico em relação a certa tendência tecnocrata na universidade brasileira, que a essa altura me parece inadequada e um pouco anacrônica. A meu ver, a pesquisa em torno do desenho segue seu ritmo ininterrupto desde que a humanidade inventou a imagem. A importância do conhecimento propiciado pelo desenho é compartilhada com tudo aquilo que o ser humano não pode fazer sem passar pela imagem. Talvez um dos inúmeros filtros interessantes para se pensar essa questão seja a consideração dos sucessivos impactos gerados pelo ininterrupto processo de desenvolvimento tecnológico dos modos de produzir imagem. Como profissional da imagem, entendo que o conhecimento é gerado sempre quando a inteligência humana se ocupa com qualquer modo de fazer. Na possibilidade de vivenciar o fazer com o corpo e com o espírito está a fonte inesgotável do conhecer, independentemente dos sistemas que se organizam historicamente para dimensionar, direcionar e controlar a maravilhosa capacidade do conhecer.
Pelo que percebo da cena artística contemporânea, não existe apenas uma plataforma que adota a dinâmica da experimentação entre mídias. Elas são inúmeras e emergem em meio ao fazer artístico, independentemente de qualquer defesa ou reivindicação. O que devo aqui ressaltar, sobretudo para quem entende a arte como um campo específico de produção de conhecimento, é que, à medida que se alargam os repertórios técnicos e teóricos envolvendo o fazer da imagem, mais efetiva será a prática da produção imagética.
Seria prematuro adiantar agora como se dará essa discussão porque ela ainda não se deu. Trata-se de uma proposta trazida por Irene Kopelman, artista argentina que iniciará seu workshop hoje, terça-feira. Mas, pensando nas implicações dessa pergunta, uma das primeiras visões que se descortina é a da importância de se conscientizar, por meio da experiência estética, de quanto a ocupação dos espaços pelos corpos é regida por dispositivos de natureza ideológica, muitas vezes incorporados por discursos que tornam esse direcionamento intencional praticamente invisível. Uma característica básica da percepção humana é a vivência da virtualidade, mesmo porque fica difícil pensar a percepção sem pensar a expressão. Essa virtualidade é constantemente manipulada por instâncias socioculturais interessadas em atribuir sentidos éticos, morais e políticos às capacidades inventivas, perceptivas e expressivas do homem. Toda paisagem é uma invenção carregada de sentidos virtuais que condicionam os modos de percebê-la. Enquanto invenção, a paisagem mobiliza o sentido da localização. E todo corpo que se localiza assume uma consciência e uma vontade política espontâneas, estimuladas pela virtualidade da experiência sensorial transformada em experiência estética. Assim, lidar com a paisagem no sentido ampliado e por meio da linguagem do desenho como ponto de partida para qualquer problematização pode facilmente se transformar em ato político.
Nenhuma expressão humana, artística ou não, está distante dos contextos em que qualquer acontecimento se materializa. Mais recentemente, correntes do pensamento filosófico ocidental têm chamado a atenção para a via múltipla caracterizada pelos processos comunicacionais humanos. Neles, o entendimento da interlocução se amplia para além das fórmulas convencionais que anteriormente classificavam imagens estáticas como elementos passivos no processo da comunicação. Com a invenção da imagem em movimento, através da tecnologia do cinema, começou a ficar mais evidente a influência ativa que qualquer sistema comunicacional exerce sobre a sensorialidade humana. É a partir desse viés que se pode atribuir vida e identidade próprias a qualquer prática expressiva. Como em um caminho de mão dupla, no qual, além do emissor e do receptor, a mensagem e outros elementos menos definidos como os ruídos e a entropia na veiculação da energia comunicacional assumem participação ativa nesse processo.