A onda que fez a candidata Marina Silva (PV) surfar em 19,6 milhões de votos, forçando um segundo turno improvável até semanas atrás, não é apenas verde, como imaginam alguns analistas. Tem também uma coloração conservadora, tingida por grupos religiosos assustados com uma pretensa posição da candidata favorita em favor da descriminalização do aborto e, por fim, assume outra cor de difícil distinção nesse caleidoscópio eleitoral, pintada por um eleitor politizado e que deseja postergar ao máximo a decisão final, esperando que o debate ganhe em qualidade mais adiante. “Marina conseguiu ser um receptáculo muito confortável para as pessoas que estavam, em algum sentido, incomodadas com a polarização vigente”, analisa o professor Bruno Reis, do Departamento de Ciência Política da Fafich. Nesta entrevista ao Portal da UFMG, Reis, além de dissecar a onda eleitoral que provocou o segundo turno, analisa também o protagonismo exercido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha. Houve mesmo uma onda verde na reta final da campanha presidencial ou foi uma onda conservadora? No caso da Marina, houve claramente um salto durante as 48 horas que antecederam a eleição, algo bem súbito que não pode ser interpretado como uma onda. Não dá para interpretar essa oscilação como algo produzido por algum tipo de persuasão em torno da causa ambiental. Até onde é possível enxergar, parece que houve, sim, uma mobilização evangélica misturada com uma disseminação de vídeos, repercussões de declarações da candidata Dilma Rousseff feitas em 2007 e a boataria em torno daquela coisa que nem Cristo me tira essa vitória, também atribuída à Dilma. Isso parece que produziu algum efeito. E também acho que aconteceu um fenômeno que tem se repetido em todas as eleições presidenciais no Brasil: o vencedor no primeiro turno perde alguns pontos percentuais entre a última pesquisa e a apuração. Isso aconteceu nas duas eleições de Fernando Henrique e nas duas do Lula. No caso do Lula, resultou no segundo turno e no de Fernando Henrique em vitórias menos folgadas do que as pesquisas indicavam. Por que isso acontece? Essa quebra é produzida por gente que começa a votar simplesmente para ter segundo turno. Surge uma dúvida, uma certa insegurança na hora agá. Acredito que, em alguns lugares, esse fenômeno foi muito importante. Veja o caso de Belo Horizonte, onde a Marina teve 40%, a Dilma 31% e o Serra 28%. Essa votação não é resultado de terrorismo evangélico nem de bandeira ambientalista. Acredito, por exemplo, que a vantagem da Dilma é maior do que a que saiu das urnas no primeiro turno. Tem muita gente que votaria na Dilma, migrou para a Marina e agora já voltou apara Dilma. Houve uma flutuação de véspera de primeiro turno, acrescida de desgaste em função do caso Erenice Guerra e bombardeio evangélico. São vários perfis. Parte, sim, é formada por um eleitorado religioso, relativamente simplório politicamente, que se assustou com pílulas de informação disparadas por algum vídeo em torno da descriminalização do aborto ou boataria. Há também um tipo de eleitor que nada tem de simplório, às vezes é sofisticado, e que hesita em suas convicções exatamente porque medita muito. Há algo de inseguro nesse voto, mas curiosamente isso não reflete um eleitor desinteressado da política. Penso até que se trata de uma pessoa que acredita, ingenuamente, em algum ponto no futuro, que terá a oportunidade de ver um confronto de ideias e um debate sofisticado. Há uma idealização política nessa visão. Os debates são cuidadosamente coreografados pelas chapas, pelas campanhas que exigem pergunta e resposta com tempo delimitado, réplica e tréplica, regras que deixam o debate antisséptico, com baixo nível de riscos e incertezas. Não é porque haverá segundo turno que agora tudo será diferente. Houve segundo turno em 2002 e em 2006 e nem por isso o rumo da eleição mudou. De qualquer maneira, o perfil do eleitor que se movimenta nessa direção é de alguém mais sofisticado e reflexivo, e que, no entanto, manifesta insegurança a respeito da sua própria opção e espera para ver novos debates. No caso da Marina, acho que ela conseguiu ser um receptáculo muito confortável para as pessoas que estavam, em algum sentido, inconformadas com a polarização vigente. Bem diferente, por exemplo, da Heloísa Helena, uma contestação do PT pela esquerda. O discurso da Marina encontra receptividade em certo eleitorado tucano; ela tem também uma biografia ligada ao PT e um background sindical. Enfim, ela se posicionou de maneira taticamente engenhosa. Há quem veja um perfil muito ambíguo na Marina. Ela teria, segundo determinada análise, um pé no século 21, ao empunhar a bandeira do desenvolvimento sustentável, e o outro cravado no século 19, ao se alinhar com tendências religiosas e conservadoras. O fato de ela sintetizar um pouco esses dois Brasis, o moderno e o arcaico, não ajuda a explicar esse desempenho eleitoral? Essa ambivalência, que pode parecer como vulnerabilidade para um intelectual que tente fazer um diagnóstico ideológico da candidatura, é, do ponto de vista pragmático, um trunfo, e acho que Marina usou isso de maneira deliberada e competente. Quer dizer que é uma tática e não uma característica da personalidade dela? Eu não quero dizer que ela estivesse mentindo ou tentando ludibriar as pessoas, mas o fato é que ela não é uma política ingênua. Acho que parte dos simpatizantes dela cultua uma espécie de pureza. As pessoas não se cansam de idealizar a política e de buscar algum tipo de santo ou santa. Mas não é assim que funciona, felizmente. Políticos são pessoas pragmáticas, atentas ao que acontece "embaixo" e atentas às consequências de seus atos. Marina está mais para esse perfil do que para o de uma santa. E como é uma pessoa sinceramente religiosa, isso é um trunfo importante. Ela tem sabido usar essa marca de maneira muito desenvolta, consegue fazer a profissão de fé dela de maneira convincente, transmitindo sinceridade – e ao que tudo indica, é sincera mesmo. Ao mesmo tempo, adota posições políticas, tem uma plataforma avançada e que acena para o futuro, que é a sustentabilidade ambiental. No fundo, ela tempera essa identidade primária mais avançada com posições políticas em outros temas muito cautelosas, centristas. Não tenta ser arrojada em tudo, caso contrário seria vista como uma radicaloide irrelevante e jamais teria protagonizado essa onda. Ela cometeria um suicídio político se fosse além da questão do meio ambiente e ameaçasse com reviravoltas no modelo econômico. Ela elegeu uma prioridade, fundada em agenda de longo prazo, e tem naturalmente uma empatia forte com o povo pelas suas origens e identidade religiosa, além de evitar riscos adotando uma postura institucional, cautelosa, prudente, pragmática em temas setoriais variados. Nos temas mais sensíveis, de natureza religiosa, como o aborto e afins, ela os neutraliza com a posição politicamente correta de um plebiscito, que normalmente ninguém critica. Considero que os plebiscitos são um desastre, sou refratário a eles, mas a maioria das pessoas, incluindo os intelectuais e militantes de esquerda, gosta dessa alternativa. Claro. Eu acho que isso aconteceu naquele debate sobre o desarmamento Um dos momentos mais conflituosos da campanha foi o embate que o presidente Lula travou com a imprensa. Um se disse perseguido pelo outro. Lula fala em golpe dos grandes veículos de comunicação, e a imprensa alega que sua liberdade está ameaçada pelas ações do governo e pelo próprio discurso do presidente. Nessa história toda quem está com a razão? Essa história me faz lembrar aquele ditado segundo o qual "em casa que falta pão todo mundo briga e ninguém tem razão". Os dois lados estão forçando a barra, ambos esgrimem argumentos na arena política eleitoral. O presidente é um ator político, um chefe de Estado, mas também atua como chefe de governo e de uma facção. Está engajado em uma campanha e faz um discurso de maneira coerente com isso. É assim que funciona o mundo lá fora e, se no Brasil tradicionalmente isso não acontecia, era porque raramente os presidentes chegaram ao fim de seus mandatos em condições de influir na sua sucessão. O Lula é uma exceção, com seus 80% de aprovação popular, e está empenhado em garantir a continuidade de seu trabalho, o que é perfeitamente natural, quase uma obrigação, eu diria, de coerência. Creio que há um claro exagero da imprensa, está tudo funcionando bem, temos um Ministério Público atuante. Vários ministros do Lula foram derrubados por problemas de corrupção, e isso depõe a favor da nossa democracia. Não vivemos um processo de mexicanização, com um partido flagrantemente hegemônico. É só olhar o resultado das eleições para o Congresso, sobretudo para a Câmara dos Deputados, e para os governos estaduais. Nossa política continua fragmentada, com uma grande dispersão partidária. Temos um presidente popular que está em condições de eleger sua sucessora, não há nada de errado nisso. Quanto à imprensa, eu aprecio e respeito a postura do Estadão {o jornal O Estado de São Paulo}, que declara, em editorial, seu apoio à candidatura do José Serra. Gostaria que a Folha fizesse a mesma coisa, até porque parece evidente que ela tem um viés mais simpático ao Serra. Quanto ao que fazer com a mídia, acho que a preocupação do presidente é pertinente. De um modo geral, a gente imagina que a mídia deveria ser controlada por meio do noticiário, o que é insolúvel, esbarra na liberdade de expressão, mas a preocupação com a estrutura de propriedade do setor de mídia, com o seu grau de concentração, é perfeitamente legítima. A mídia tem funções políticas importantes, mas é também uma indústria. Assim como o Cade força a Ambev a se livrar de algumas marcas, eu veria com muita simpatia que coisas desse tipo começassem a acontecer também no setor de mídia pelo mundo afora, não só no Brasil. O caso da Itália com o Berlusconi é gravíssimo. É de preocupar qualquer democrata em qualquer parte do mundo. O presidente também “decretou” o fim dos formadores de opinião, argumentando que o povo não precisa de quem forme a sua opinião. Quem forma opinião do Brasil do século 21? Eu espero que seja o eleitorado, cada um com a sua cabeça. É claro que todos nós fazemos parte de uma imensa rede de influências; em alguma medida o ambiente forma nossa opinião e nós mesmos a elaboramos conversando com amigos e com nossos botões. O Lula tem toda razão ao dizer que não há cabimento em haver uma categoria dos formadores de opinião, porque é politicamente incorreta a ideia de que existe quem forme opinião e outros que têm a opinião formada. Há muita mitologia nessa história dos formadores de opinião, muito autoengano da classe média, que sabendo-se minoritária tentava se iludir com a ideia de que forma opinião. Eleição é um processo, em boa medida, fora do controle das elites. Há algum controle, algum viés, alguma assimetria, ou mesmo uma injustiça permanente na forma de financiamento de campanha, na forma de certo favorecimento eventual à mídia, mas em larga medida é um processo fora do controle, porque, na hora agá, mais de 100 milhões de pessoas são chamadas a votar e elas escolhem o que lhes vem na cabeça. E aí ou se rouba na apuração ou tem que aturar o resultado. Se houvesse esses controles, esses formadores de opinião, as eleições seriam inofensivas. As eleições fazem a diferença, não é à toa que lutamos tanto por elas. Os debates parecem frustrantes, mas o fato de elas acontecerem é o mais importante. O debate, os candidatos e os resultados são secundários, e às vezes ganha quem a gente não gosta e às vezes ganha o que a gente gosta. Mas o mais importante, sim, é deslocar para a rua o centro de gravidade do poder político, da Constituição, dos mandatários e dos gabinetes – e, ao fazer isso, você tem que encaixar certa agenda da rua. Foi assim que veio a democratização, e o controle da inflação se tornou algo absolutamente prioritário para as ruas, embora não fosse tão prioritário assim para os mais ricos.
Que tipo de eleitor protagonizou essa quase virada?
Essa então é uma visão ingênua, e não madura, como muitos chegam a pensar?
O plebiscito seria uma forma de se esquivar de certas responsabilidades?
Havia uma maioria parlamentar a favor dessa política, e os setores contrários a ela conseguiram "enfiar" um plebiscito. O problema com o instrumento não é o grau de informação da população ou se ela está apta ou não a decidir isso; o problema é que, no momento em que se decide algo por plebiscito, você isenta qualquer protagonista do sistema político de responsabilidade pela decisão. O povo decidiu e ponto. Acho os plebiscitos péssimos instrumentos de decisão política, mas como são democráticos, porque chamam o povo para decidir, acabam ganhando respeitabilidade. Os políticos mais espertos esgrimem isso com habilidade. E Marina – isso não é uma crítica, mas um elogio – cabe no clube dos mais espertos.