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Longe de ser uma mera forma de organização temporal, o calendário constitui uma ordem social que se produz como narrativa, à medida que combina leitura, personagens, ações, valores e orientações. Assim define o diretor do Museu Nacional de Etnologia de Portugal e professor do Instituto Universitário de Lisboa, Joaquim Pais de Brito. O estudioso esteve ontem no campus Pampulha, para ministrar palestra de abertura do III Colóquio Festas e Socialidades. Segundo ele, saímos de uma cultura em que o tempo era organizado em função dos ciclos solar, lunar e vegetativo para um calendário cuja principal linha narrativa é a vida de Cristo. Em entrevista ao portal da UFMG, o professor analisa os eixos de estruturação do calendário festivo, a relação entre carnaval e cristianismo e a influência de mão dupla entre os hemisférios norte e sul em relação às festividades. Como se deu a transição do calendário baseado em ciclos da natureza para o modelo estruturado sobre a história da vida de Cristo? Por que o inverno? Qual a relação entre a Igreja e o carnaval? Como o Hemisfério Sul transformou as festividades incorporadas pelo calendário do norte?
A dimensão arcaica da expressão dos calendários exprime e revela o ciclo astral. O ciclo solar, de extraordinária importância, porque dá os grandes movimentos em um período longo, e o lunar, mais recorrente, e que tem correspondência com o ciclo de fertilidade da mulher. Esses são os mais importantes. Há, ainda, mais um que é a manifestação física desses dois, o próprio ciclo vegetativo: a semente, a germinação, o desaparecimento da vegetação e o ciclo biológico dos animais. É então que o trabalho de domesticação do tempo trazido pelo cristianismo vai inscrever os seus personagens marcantes, que dão novos sentidos ao tempo. O ciclo vegetativo e, sobretudo, os ciclos solar e lunar vão ficando ocultos nas páginas do calendário. Mas o Natal, por exemplo, exprime o ciclo solar ao coincidir com o solstício de inverno. São expressões como essa que revelam o texto construído e controlado pela hierarquia da Igreja, que, no entanto, nunca conseguiu evitar a explosão das manifestações laicas e arcaicas daquilo que poderíamos designar um “pensamento selvagem” – para tomar a expressão de Lévy-Strauss – que marcam o calendário e, particularmente, o tempo do inverno.
Porque é a parte do ano que, do ponto de vista das manifestações e da morfologia, é a mais profunda, mais arcaica, e que tem expressões de paroxismo, de incerteza absoluta, de dúvida, de caos. Nesse sentido, apresenta, também, uma maior homogeneidade em relação aos outros períodos.
O carnaval é um imenso período que, de certo modo, ocupa o inverno. Com a marcação do calendário pela Igreja, ele se transformou em uma festa permitida, que a lei civil confirmou – tanto que terça-feira de carnaval é feriado. Depois começa a quaresma, que consiste em um período de recolhimento e penitência. Portanto, o carnaval corresponde a uma temporalidade longa cuja função é beneficiar a penitência que virá. Há autores que o associam à Roma, mas a interpretação deve ser feita no contexto dessa temporalidade do calendário. As manifestações são as mesmas: máscaras, fustigações e todas as morfologias que compõem a festa. Antes mesmo de existir o carnaval, já havia um conjunto de práticas carnavalescas que se mantiveram com o passar do tempo.
O carnaval que o Brasil “exportou” para o Hemisfério Norte, por exemplo, mostra corpos despidos. Porém, no continente europeu, faz frio intenso nessa época do ano. Lá, os corpos andavam cobertos de trajes, de musgos, de peles – e o lado mascarado era muito importante nas vestimentas. Já o Brasil criou essa cultura de exibição do corpo que acontece no verão daqui, mas em pleno inverno europeu. De qualquer forma, hoje a Europa é menos fria do que era décadas ou séculos atrás.