A relação de Paulo César com Roberto Carlos não é recente: foram 15 anos pesquisando sobre a vida do rei. Apesar do litígio, ele garante que não sente rancor e que deve voltar a biografar personalidades. O historiador participou da mesa-redonda A biografia e seus fantasmas durante a programação do Festival de História (Fhist), aberto na sexta-feira passada em Diamantina, com a participação da UFMG. No encontro, falou sobre a polêmica envolvendo a proibição de seu livro e os desafios enfrentados por um biógrafo. Leia entrevista a respeito, feita pela equipe da rádio UFMG Educativa, presente no evento: Qual o grande desafio de biografar personalidades tão conhecidas como Roberto Carlos? Esse seria o fantasma que dá título à mesa-redonda? Em sua avaliação, existe um limite entre o direito à intimidade e o direito à liberdade de expressão? Como está o andamento do processo envolvendo a proibição da biografia Roberto Carlos em detalhes? Roberto Carlos era seu ídolo de infância. Essa relação mudou quando soube que o cantor o estava processando? O senhor é historiador de formação. Como é o trabalho de pesquisa por trás da construção de uma biografia? Como obra literária, é possível dizer onde está a ficção e onde está a história, a pesquisa, o rigor científico? Depois dessa experiência o senhor pretende voltar a escrever biografias?
Quais são os fantasmas que rondam um biógrafo? Para o jornalista e historiador Paulo César de Araújo [na foto, de Foca Lisboa], sem dúvida, são os processos judiciais que o acompanham desde que publicou biografia não autorizada do cantor Roberto Carlos. Em 2007, o músico ganhou a disputa na Justiça e conseguiu proibir a venda de exemplares de Roberto Carlos em detalhes, em todo o território nacional.
O grande desafio é tentar driblar a voracidade desses personagens, ou de seus familiares, no caso dos biografados que já morreram, para que possamos pesquisar e escrever livremente. Da maneira como está, e se seguirmos nessa “batida”, vai se tornar impossível escrevermos uma biografia no Brasil, porque parece que os personagens e os familiares só querem a biografia autorizada. E uma biografia autorizada, como o nome diz, é uma biografia escrita pelo personagem ou por seus próprios familiares. O autor não pode interferir muito. Então a dificuldade maior é esta: conseguir que a legislação brasileira se conforme ao país moderno e democrático em que vivemos.
Claro. É um fantasma imenso e que paira sobre a cabeça de todos porque existe uma brecha na legislação. Felizmente, a deputada federal Manuela d’Ávila (PCdoB/RS), propôs a retirada de artigo específico do Código Civil, para estabelecer a plena liberdade na produção de biografias no Brasil. É um fantasma que precisa ser extirpado.
Claro. Esse limite não pode ser definido pela legislação, porque é impossível, nem pela parte que está sendo focalizada. Esse limite é o bom senso do historiador. Eu tenho o meu: se um fato da vida privada, por exemplo, não interfere na vida pública e não traz maiores consequências, não há motivo para falar da intimidade. Agora, se um fato da vida privada interfere e produz consequências que se tornam públicas, não tem por que não falar. Suponha: se o personagem sofre de asma, é cantor, começa a faltar aos shows e faz músicas sobre as noites que sofreu de asma, eu tenho que falar da asma dele porque ela se torna importante para explicar a sua trajetória, a sua obra. Esse limite precisa estar na consciência ética de cada profissional de memória, no caso, um escritor ou biógrafo.
Continua na Justiça. No momento, a venda do livro ainda está proibida. Mas qualquer um pode baixar o texto na internet, imprimir e ler. A minha advogada entrou com recurso. Eu vou conseguir. O que posso dizer é o seguinte: mais cedo ou mais tarde esse livro vai voltar. Pelas razões que ele foi proibido, pela forma que foi proibido, a medida não vai se sustentar.
Não. Esse significado nunca vai se apagar, está em minha memória afetiva. Mas Roberto Carlos é meu objeto de estudo. Queira não, sou o biógrafo dele. Eu não posso brigar com meu objeto de estudo. Ele brigou comigo, mas isso não me impede de continuar pesquisando, escrevendo e falando sobre Roberto Carlos. É um problema dele, não meu.
É um trabalho duro. No caso de uma biografia dessa, “de fôlego”, foi preciso vasculhar todas as fontes possíveis, arquivos públicos e privados, fontes orais, áudio, vídeo; enfim, é um trabalho de garimpagem. Mais do que uma pesquisa, chamo esse processo de investigação, pois é preciso, por exemplo, localizar personagem que já está fora do circuito musical, com mais de 70 anos de idade e de paradeiro desconhecido. É preciso ser detetive para achar esse personagem e convencê-lo a falar. Ao mesmo tempo, é necessário ler a bibliografia sobre o período de seu apogeu, para articular fatos da vida particular ao tempo histórico. É um trabalho difícil, que envolve investigação, dedicação à leitura e discernimento para extrair o que é relevante. Se publicarmos todas as informações que colhemos, teremos um catálogo telefônico. Isso não é biografia, biografia é uma obra literária.
O historiador presta contas ao tribunal de apelação da História, então não há muito que inserir a ficção. Vivemos essa tensão da obediência ao fato. Temos de ser fiéis às fontes e às evidências. Claro que, às vezes, você quer falar de determinado fato e não possui dados exatos sobre ele, apenas indícios, sinais. Para o historiador há uma saída: dizer talvez, provavelmente. O historiador tem compromisso com a verdade, com as fontes e o que elas demonstram, suas evidências. Então, a margem para a ficção é muito restrita.
Pretendo, pois esse gênero é cada vez mais importante no Brasil. De maneira alguma a minha experiência me deixa deprimido ou temeroso. As trevas não podem prevalecer sobre a luz. Eu sou historiador, pesquisador, vou continuar sendo e espero que outros historiadores e pesquisadores também continuem escrevendo biografias. Temos que ir para frente, não para trás. Nesse sentido, pretendo escrever outros livros, inclusive sobre o Roberto Carlos, não tenho problema com isso.
.
Tem algum outro personagem em mente?
Sim, mas só posso falar quando estiver definido. Tenho vários personagens em mente. Pena que não vou ter tempo em vida para produzir todos esses livros.