|
Ao leitor contumaz de nomes como Jorge Luis Borges, Georges Perec, Raymond Queneau e até Ítalo Calvino, uma sugestão seria apenas aparentemente esdrúxula: que tal um curso de extensão na área da matemática? Essa medida simples teria efeito intenso sobre a fruição da leitura de obras com Livro de areia, de Borges, e Vida – modo de usar, de Perec. A explicação é dada por trabalho de Jacques Fux, defendido em 2010 no doutorado em Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale), uma das indicadas ao Grande Prêmio de Teses deste ano na UFMG. O trabalho concorre agora a premiação nacional da Capes. Jacques Fux é graduado em matemática e fez mestrado em ciência da computação antes de enveredar pela literatura e juntar campos que muito pouca gente se atreve a relacionar. “Embora amadores nos conceitos da matemática, Borges e Perec (objetos de seu estudo) foram obsessivos ao explorar as regras da matemática para compor suas histórias”, conta Fux. O argentino Jorge Luis Borges, autor de O Aleph e A biblioteca de Babel, lançou mão em diversas obras de paradoxos e do conceito de infinito. No conto Livro de areia, por exemplo, ele fala de um livro em que as páginas são numeradas apenas formalmente, pois elas estariam distantes umas das outras infinitas páginas. O francês Georges Perec, por sua vez, ficou conhecido por ter escrito La disparition (O desaparecimento), com 370 páginas e sem usar a letra e. A ausência da letra mais frequente em seu nome foi referência à perda dos pais judeus em episódios relacionados à guerra e ao Holocausto. Perec, morto em 1982, foi um dos expoentes do movimento conhecido como Oulipo (Ouvroirs de Literature Potencielle), por que passaram nomes como Calvino, Marcel Duchamps e Julio Cortázar. “Escritores como Borges e Perec empregam a matemática como mais um recurso e uma ferramenta ficcional”, afirma Jacques Fux, que analisou semelhanças e diferenças entre a utilização da literatura e da matemática, e entre os procedimentos de um e outro autor. “A proposta de leitura que se situa entre as duas linguagens permite que o leitor adentre tais obras com ou sem conhecimento matemático, conhecendo ou não a solução dos enigmas, a complexidade dos paradoxos e a enorme variedade combinatória que estrutura as obras”, explica o pesquisador. Princípios básicos Leitor assíduo de ficção desde muito jovem, Jacques Fux admite que encontrou o ambiente ideal para sua pesquisa, unindo os dois universos em que se sente mais à vontade. E ele considera que seu trabalho inova ao juntar Borges e Perec numa tese de literatura, com olhos de matemático. “Há obras, por exemplo, que criticam a abordagem matemática de Borges, outros preferem a análise pelo viés único da literatura. Minha tese trilha um caminho diferente”, conta Fux, que publicou recentemente o livro Literatura e matemática – Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (editora Tradição Planalto), em que amplia seus estudos, incluindo outros autores. Outra situação inédita criada pela tese de Jacques Fux foi a reunião, numa banca de defesa, de nomes como Virgílio Almeida, da ciência da computação, e Maria Esther Maciel (orientadora da pesquisa) e Eneida Maria de Souza, ambas da Fale. De acordo com o autor do trabalho, mais uma vez em suas considerações finais, “a matemática serve aos intentos ficcionais dos autores abrindo espaço para a reflexão e a potencialização das questões específicas da literatura”. Ainda segundo Fux, “a escritura, a universalidade, as possibilidades de leitura e a posição do leitor são problemas centrais trabalhados pelos dois escritores, mesmo em sua utilização matemática”.
Como escreve Fux nas considerações que concluem seu trabalho, Borges e Perec aplicaram fundamentos primordiais da matemática. O primeiro trabalhou muito com os paradoxos oriundos dos gregos e mais tarde estudados pela matemática avançada, e os conceitos de infinito e enumeração, presente também na filosofia. “Nesse processo, ao trabalhar com os fundamentos (...) da matemática e da lógica, Perec, Borges e os oulipianos tentam discutir, também, os princípios e as questões básicas da literatura”, escreve Jacques Fux.