Os Estados têm a responsabilidade de proteger suas populações contra crimes como genocídios e de limpeza étnica, e a comunidade internacional tem o dever de apoiá-los no cumprimento dessa obrigação. E consolida-se o entendimento da comunidade internacional sobre a inadequação do uso da força em nome da promoção dos direitos humanos. Essa área do direito internacional é tema de livro do diplomata Marcelo Böhlke, que faz palestra esta noite (às 18h) na Faculdade de Direito da UFMG. Lotado no setor político da Embaixada do Brasil em Pequim, na China, Böhlke é doutor em Direito Internacional pela UFMG. Atuou como consultor jurídico na Missão do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York, e integrou a equipe brasileira no Conselho de Segurança. Nesta entrevista ao Portal UFMG, ele fala dos estudos que resultaram no livro A proibição do uso da força no Direito Internacional contemporâneo, que será lançado hoje. Em que circunstâncias e épocas – e em função de que casos – foi proibida a ameaça ou uso da força nas relações internacionais? Por que as intervenções humanitárias não encontram respaldo no direito internacional? Como a necessidade de combater o terrorismo afetou (ou ainda afeta) as discussões sobre limites da intervenção da comunidade internacional? Quais foram os casos de guerras e conflitos que, de formas diversas, mais contribuíram para definir os rumos e limites das formas de intervenção? Em que medida as controvérsias sobre a atuação do Conselho de Segurança da ONU (que por vezes tem deliberações desrespeitadas por países e organizações como a Otan) estão relacionadas à questão central de seu estudo? Quais são as perspectivas de evolução das formas de atuação da comunidade internacional na defesa dos direitos humanos e em outras questões?
Por que a preocupação com o uso da força no direito internacional e como o tema se relaciona com sua atuação como diplomata?
A questão do uso da força tem sido objeto de estudo do direito internacional desde o surgimento da disciplina. O tema evoluiu significativamente nesse período, mas alguns pontos seguem controversos, entre eles a possibilidade do uso da força com vistas à proteção dos direitos humanos no território de terceiro Estado. Como diplomata, acompanhei esse assunto de perto em discussões no âmbito das Nações Unidas, inclusive ao integrar a equipe brasileira do Conselho de Segurança.
Embora o Tratado de Paris de 1928 tenha sido o primeiro a restringir o recurso à guerra como instrumento de política nacional, o uso da força só veio a ser efetivamente proibido com a adoção da Carta das Nações Unidas, em 1945. A proibição da ameaça e do uso da força nas relações internacionais só tem duas exceções: legítima defesa e autorização do uso da força pelo Conselho de Segurança, nos termos do Capítulo VII da Carta. A proibição se deveu à gravidade da Segunda Guerra Mundial e ao temor de que um terceiro confronto internacional ocorresse, com consequências ainda mais severas.
Desde 1945, o Estado não pode mais utilizar a força armada para perseguir quaisquer objetivos, exceto em legítima defesa ou com autorização do Conselho de Segurança. Por mais nobre que possa parecer o objetivo alegado por Estados que exercem o chamado "direito de intervenção humanitária", o direito internacional convencional não prevê essa possibilidade. Da mesma forma, não há respaldo no direito consuetudinário, tendo em vista que não há prática estatal reiterada, nem percepção de que essa prática estaria em conformidade com o direito (opinio juris).
Defina a responsabilidade de proteger e explique como ela representa evolução em relação às intervenções humanitárias.
O conceito da responsabilidade de proteger foi criado pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS), em 2001, e corroborado em documentos das Nações Unidas, inclusive a Resolução 1/60 da Assembleia Geral (documento final da reunião de cúpula de chefes de Estado e governo de setembro de 2005). Segundo esse conceito, os Estados têm a responsabilidade de proteger suas populações contra crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e limpeza étnica. A comunidade internacional tem o dever de auxiliar os Estados a cumprirem essa obrigação. Caso o Estado não esteja em condições ou disposto a proteger as suas populações, a comunidade internacional deve agir em conformidade com os termos da Carta das Nações Unidas, inclusive por intermédio do Conselho de Segurança. A responsabilidade de proteger assegura, assim, a obrigação de todos os Estados de protegerem suas populações e se orienta pelo direito internacional.
O advento do terrorismo internacional levou a maior assertividade por parte das potências que desejam pôr fim ao flagelo. Muitas vezes, os limites impostos pelo direito internacional, como soberania estatal e não-intervenção, geram dificuldades na execução de medidas de combate ao terrorismo. Esses limites são, seguidamente, testados nos esforços de combate ao terror.
Até fins da década de 1980, a inoperância do Conselho de Segurança da ONU levou alguns Estados a empregarem, de forma individual, a força com finalidades que incluiriam a proteção dos direitos humanos. Nos anos 90, coalizões informais de Estados ou sob a égide de organizações regionais passaram a agir em caso de violações maciças aos direitos humanos. Na última década, o Conselho de Segurança tem tomado medidas que, por vezes, incluem a proteção dos direitos humanos. Tem havido, claramente, maior respeito aos princípios e normas de direito internacional nessa seara, embora ainda haja desafios importantes a serem superados, inclusive nos limites de atuação impostos pela Carta das Nações Unidas ao Conselho de Segurança. Outro limite importante é o escasso interesse da comunidade internacional por agir em Estados fragilizados que não contem com recursos naturais expressivos ou não estejam situados em regiões estratégicas. Da mesma forma, a comunidade internacional se vê imobilizada quando estão envolvidos interesses de grandes potências.
Há certa tendência de se interpretar extensivamente o mandato conferido pelo Conselho de Segurança à atuação de coalizões de Estados, como no caso da atuação da Otan no território da antiga Iugoslávia. O estudo trata dessa polêmica em vista das consequências que tem para a previsibilidade do direito internacional e a segurança jurídica.
A formação e a consolidação de estrutura internacional de promoção e proteção dos direitos humanos servirão para garantir que os princípios basilares do direito internacional, como respeito à soberania, não-intervenção nos assuntos internos dos Estados e proibição do uso da força nas relações internacionais, estejam em consonância com a defesa dos direitos humanos. Junto ao desenvolvimento do direito internacional, a comunidade de Estados tem, crescentemente, atribuído maior valor ao tema, algo que deverá ensejar atuação mais incisiva da comunidade internacional nessa área.