As relações profissionais no mercado de trabalho doméstico brasileiro mantêm resquícios dos tempos da sociedade escravocrata. Esse é o mote do artigo As patroas sobre as empregadas: discursos classistas e saudosistas das relações de escravidão, vencedor da 8ª edição do prêmio nacional Construindo a Igualdade de Gênero, na categoria Mestre e Estudante de Doutorado. A autora, Juliana Teixeira [na foto de arquivo pessoal], é aluna de doutorado do Centro de Pós-graduação em Administração (Cepead) da UFMG. Para analisar os discursos construídos sobre essa categoria profissional, cujas mulheres representam 93,4% do total, segundo dados de 2010 do IBGE, a pesquisadora buscou o termo “empregada doméstica” no Orkut, encontrando 41 comunidades relacionadas. O grupo “Vítimas de empregada doméstica” foi escolhido como objeto de pesquisa, por apresentar 1.485 membros – maior número entre as comunidades encontradas. Como a visualização das postagens é aberta a não membros, foi possível ter acesso a todas as discussões. Segundo Juliana, embora o Orkut tenha perdido espaço no Brasil, a comunidade ainda está ativa e tem postagens feitas até 2012. Para ela, as mensagens escancaram preconceitos raciais, sexuais e de classe, que são, em geral, mascarados na sociedade brasileira. “Nas redes sociais, as pessoas parecem se sentir mais à vontade para manifestar esses discursos – especialmente no grupo em questão, formado apenas por patroas”, observa. Vitimização das patroas e vilanização das empregadas, disseminação de estereótipos, delimitação espacial, moral e cultural entre pobres e ricos e características peculiares ao trabalho escravo foram alguns dos elementos ideológicos identificados nas mensagens online. “Nota-se uma visão dicotômica da realidade, pois as empregadas são sempre as vilãs das histórias, e as patroas, as boazinhas”, analisa Juliana Teixeira. Os estereótipos se relacionam a diversos aspectos, a começar pela criminalidade, generalizada como comportamento comum a todas as domésticas. “Certas postagens, por exemplo, dizem que empregada ideal é aquela que mostra a bolsa antes de sair do trabalho, ou que as casas que são roubadas sempre têm uma empregada doméstica”, revela. 'Piriguetes' e 'falsas santas' “Essa imagem foi historicamente construída, pois, no período escravocrata, muitas mulheres eram servas sexuais”, salienta Juliana, acrescentando que a questão está ligada também à imagem da mulher negra no Brasil. Para ela, a sensualização da figura da “mulata” no Brasil abrange fortemente a classe das domésticas, negras em sua maioria. Além disso, a autora salienta que o preconceito também se faz notar por meio da utilização recorrente de expressões como “Ô, raça!”, que revelam uma discriminação velada, enquadrada no mito da democracia racial. Os discursos também são marcados pela forte diferenciação entre pobres e ricos – e pelo suposto risco que as domésticas representam por se constituírem em elo com regiões periféricas da cidade. “Ela rompe com essa delimitação espacial quando entra nas casas em que trabalha, levando consigo elementos culturais de seu meio”, explica a doutoranda. “Como resultado, as patroas temem, por exemplo, a influência que babás podem exercer sobre seus filhos", lembra a pesquisadora. O estereótipo rico-pobre emerge também na percepção de que as empregadas desejam os bens materiais das patroas, não podendo, assim, recusar aquilo que lhes é ofertado. “As patroas se consideram boas empregadoras porque dão às domésticas coisas velhas que não usam mais, exercendo práticas que, no fundo, mantêm a hierarquia entre pobres e ricos". Em geral, domésticas também são consideradas um ônus, pois não geram lucros, como os trabalhadores inseridos em organizações. Aos olhos das patroas, elas trazem apenas prejuízos. “Nesse sentido, é comum encontrar discursos em que se diz: ‘Pago todos os direitos, tudo certinho’, como se isso fosse algo além da obrigação de qualquer empregador”, aponta a autora. Mudança de cenário Para a pesquisadora, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante aos empregados domésticos os mesmos direitos assegurados aos demais trabalhadores – que deverá ser votada nos próximos dias pelo plenário do Senado – é outro fator positivo nesse contexto de transformações, pois busca reparar uma desigualdade histórica. No entanto, em sua opinião, ela não implica necessariamente mudanças na maneira de se construir e representar socialmente a empregada doméstica no Brasil. O artigo premiado se insere em linha de pesquisa que integra movimento contra-hegemônico no campo da Administração, em geral marcado por estudos mais gerencialistas, direcionados aos problemas de grandes organizações e de seus líderes. Juliana Teixeira faz parte do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (Neos), coordenado pelo professor Alexandre de Pádua Carrieri, que também é seu orientador de doutorado. A proposta do grupo é articular teorias organizacionais com pensamento social, estabelecendo interfaces com disciplinas como sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e linguística. É esse enfoque crítico que permite que empregadas domésticas sejam objeto de investigação nesse campo de pesquisa. O prêmio Construindo a Igualdade de Gênero é um concurso de redações, artigos científicos e projetos pedagógicos sobre relações de gênero, mulheres e feminismos. Instituída em 2005 pela Secretaria de Política das Mulheres, no âmbito do programa Mulher e Ciência, a premiação é apoiada pelo CNPq, pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, pela Secretaria de Educação Básica e pela ONU Mulheres. (Gabriella Praça)
A sexualidade também aparece como campo permeado por preconceito nos discursos analisados. Segundo a autora, a visão que as patroas demonstram ter da classe profissional é a de ser formada por vagabundas – as chamadas “piriguetes” –, ou por evangélicas, tidas como “falsas santas”, que utilizam a religião para se mostrarem boas trabalhadoras. É comum ainda que as empregadas sejam vistas como ameaça de sedução aos maridos.
De acordo com Juliana, ao evidenciarem saudosismo em relação ao período da escravidão, os discursos presentes na comunidade evidenciam a reação das patroas diante das mudanças ocorridas nos últimos anos no cenário de trabalho doméstico no Brasil. “Há escassez de domésticas que procuram emprego como mensalistas e crescimento do número de diaristas, o que proporciona maior autonomia a essas mulheres nas relações de trabalho”, ressalta ela, observando que também houve aumento no nível de escolaridade da classe.