A falta de sistemas sanitários eficientes atinge cerca de 40% dos municípios brasileiros. Na região Norte do país, onde a situação é mais grave, apenas 3,5% dos domicílios e 13% das cidades possuem acesso à rede de esgoto. Para debater soluções para o problema de saneamento no país, o pesquisador inglês Sandy Cairncross, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, fará uma palestra nesta sexta-feira, a partir das 10h, na Sala de Seminários 1010 da Escola de Engenharia da UFMG, no campus Pampulha. Referência internacional no campo da saúde ambiental, Cairncross está na UFMG por conta do projeto Rompendo fronteiras entre as políticas públicas de saneamento e a saúde coletiva, conduzido por ele e pelo professor de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG Leo Heller. Entre uma atividade e outra, o especialista britânico recebeu a equipe do Portal UFMG para esta entrevista, na qual defende a adoção de modelos de saneamento compatíveis com o perfil socioeconômico da população. A palestra vai questionar a diferença entre qualidade e quantidade de água que seriam importantes para a saúde pública. Por que analisar a questão do abastecimento a partir dessas duas perspectivas? Por que, nesse caso, a quantidade importa mais do que a qualidade? Como o Brasil pode ampliar sua rede de esgoto e saneamento? Poderia explicar melhor esse raciocínio? O Brasil possui vários modelos de saneamento e de administração das redes de esgoto. Como isso interfere na qualidade do serviço no país? O que o senhor quer dizer com a expressão “saneamento viável”? A falta de saneamento público ainda é característica restrita aos países mais pobres? (Luana Macieira)
A principal questão é compreender como o abastecimento de água influencia a vida das pessoas. Não podemos negar que é saudável ter água limpa, mas o que se verifica é que no caso da população carente não é apenas o fornecimento de água canalizada que traz benefícios à saúde. Os benefícios vêm, principalmente, da quantidade de água. O que mais importa para a saúde é a quantidade de água usada para higiene, não tanto a sua qualidade.
A maioria das epidemias e doenças que têm relação com o abastecimento de água não são transmitidas dentro da água, mas por outras vias, como moscas e mãos contaminadas. Daí lavar a comida, utensílios e mãos parece ser mais eficaz para prevenir doenças que o abastecimento de água em si. As pessoas precisam de água para lavar a mão com sabão e evitar várias doenças. Se o recurso está ali disponível, isso já é de bastante ajuda.
Eu vejo várias soluções para os problemas de saneamento no Brasil. Uma delas é encarar alternativas de menor custo. Há algum tempo foi inventado no Brasil um sistema novo, chamado sistema de esgoto condominial. Esse modelo reduz muito os custos de implementação e manutenção, uma vez que transfere para o interior do condomínio (quadra ou quarteirão urbano) a passagem dos ramais da rede, diminuindo bastante a extensão de tubulação necessária. Em favelas, existem soluções como a latrina seca, por exemplo, que é barata e viável, pois é difícil fazer rede de esgoto nesses locais. Em alguns países há soluções sendo aplicadas pelas próprias famílias. Na Ásia e África, esses sistemas domiciliares são muitos usados, mas no Brasil há o preconceito das pessoas, que os julgam menos “nobres".
Tão importante quanto criar novos modelos de saneamento viáveis é convencer as pessoas de que eles são bons e merecem ser usados. Em uma comunidade afastada, por exemplo, ser o primeiro da comunidade a ter um banheiro é status. A pessoa quer ter banheiro e rede de esgoto não por causa da sua saúde, e sim por aquilo que o banheiro representa; prestígio, conveniência, segurança e conforto. Dessa forma, antes de tentar aplicar certo modelo de saneamento em uma comunidade, por exemplo, é importante convencer as pessoas que aquele modelo corresponde às suas aspirações. As pessoas precisam querer aquele modelo. O brasileiro não está habituado a ter fossa orgânica, por exemplo. Uma fossa orgânica resolveria? Não para todos. Precisamos saber como é que as pessoas decidem comprar o saneamento, para melhor poder convencê-los.
No Brasil, há alguns lugares em que o saneamento é feito por empresas privadas. Em outros, a administração pública é a responsável. É preciso que se estudem esses modelos de forma comparativa, para ver qual funciona melhor no país. Depois desse estudo, será mais fácil saber qual modelo deve ser aplicado onde e por quê.
Precisamos de soluções públicas mais flexíveis. Um engenheiro mecânico que faz um carro projeta um preço de venda ao longo do processo. Se o carro fica mais caro que o valor desejado, ele tira coisas desse veículo. Os engenheiros sanitários também devem agir segundo essa lógica: pensando no custo das obras de saneamento, para que o valor final do sistema seja viável para as pessoas que vão utilizá-lo. O saneamento tem que estar ao alcance da população mais pobre.
Não. Na Inglaterra, por exemplo, muitas cidades da costa lançam seus esgotos no mar, sem tratamento. A diferença é como lidamos com a situação. Nos últimos anos, a Inglaterra decidiu construir estações de tratamento nessas cidades do litoral e a situação começou a mudar. Com o dinheiro dessas estações, dava para construir uma piscina aquecida de luxo para a população em cada uma dessas praias, mas se optou por investir o dinheiro nas estações de tratamento. Esse tipo de mentalidade mostra como as decisões ambientais não são sempre fáceis.