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Entre 1888 e 1889, o café era a base da economia brasileira – e o Brasil vivia paralelamente a transição da escravidão para o trabalho livre. Essa mudança de paradigma social, somada à oposição política ao regime imperial, fomentou o surgimento de uma arrojada política econômica, de caráter expansionista, caracterizada por abundante e arriscada oferta de crédito e maior emissão de dinheiro em espécie. Tal conjuntura resultou em uma bolha especulativa no Rio de Janeiro, centro financeiro do país no período, que se espalhou pelos principais polos econômicos do país. A crise ficou conhecida como Encilhamento, e é considerada de fundamental importância para o entendimento das bases sobre as quais se consolidou o atual sistema financeiro-bancário mineiro e brasileiro. No entanto, a crise financeira do Encilhamento, que se iniciou em fins de 1891 e só foi encerrada com a crise bancária de 1900, só foi estudada histórica e economicamente em suas manifestações nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro – como se o restante do Brasil estivesse à margem desses processos. Com o intuito de jogar luz sobre a forma como atuou o sistema bancário-financeiro de Minas Gerais nesse período, Marcus Antônio Croce, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar), defendeu recentemente a tese Crises financeiras na primeira década republicana e os bancos em Minas Gerais (1889-1903), na Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG. Com foco na fundação da tradição bancária mineira a partir daquelas crises, o trabalho aponta que, na contramão do que defendem respeitados estudiosos da área, o Encilhamento não foi gerado apenas pela política econômica do primeiro ministro da Fazenda republicano, Rui Barbosa, mas começou a ser construído ainda no Império (1888-1889). “O mercado bancário brasileiro foi severamente atingido. Quebrou como um todo. Poucas instituições financeiras sobreviveram à entrada do século 20. Foi a falência de parte considerável da rede bancária brasileira”, destaca o pesquisador. O caminho do abismo Ameaçado, o governo tentou segurar o apoio das duas classes fortes, banqueiros e cafeicultores, e inventou um crédito facilitado. “O governo emprestou sem juros aos bancos, que por sua vez tinham de emprestar aos fazendeiros o dobro do dinheiro recebido a juros de apenas 6% ao ano. Ou seja, o banco recebia os juros; o governo não. Com isso, conseguiu-se o apoio dos bancos e dos cafeicultores.” No entanto, muitos banqueiros aproveitaram esse dinheiro para especular no mercado financeiro. Era a semente da crise futura. Quando chegou a República, o ministro Rui Barbosa percebeu que não poderia romper com aquele crédito, sob o risco de perder apoio dos banqueiros para o regime recém-instaurado. “O que ele fez? Dobrou os recursos dos empréstimos por meio de títulos públicos e papéis semelhantes. A especulação alcançou níveis insustentáveis. E é justo neste momento que o café entra em crise. Estoura, então, o Encilhamento”, afirma Croce. Nesse cenário, os bancos internacionais conseguiram se blindar, e os prejuízos sobraram para os bancos nacionais. “Foi uma quebradeira geral. Mas o grande ônus foi mesmo para a pequena indústria e o pequeno comércio, que ficaram sem nenhuma alternativa de crédito para se manter.” Influência do setor cafeeiro Segundo o pesquisador, um cenário de superprodução agravou a situação. “É uma lei básica da economia: com muita oferta, o preço tende a cair.” Isso derrubou o preço do café no mercado internacional – e o estado de Minas Gerais participou intensamente dessa conjuntura. Em função da especificidade dessa conjunção de aspectos agrícolas e financeiros, o período da transição entre Império e República é tratado por estudiosos como um dos mais complexos já vividos pelo país no campo da economia. Protagonista na saída da crise Segundo Marcus Croce, seu estudo é o primeiro que considera a participação de Minas Gerais nesse contexto. “Ninguém até hoje havia desvendado como o mercado bancário mineiro atuou na época, como ele sobreviveu à crise”, aponta. A tese rememora que poucos foram os estabelecimentos bancários que conseguiram sobreviver ao período compreendido entre 1892 e 1896. “A falta de liquidez e a existência de grandes operações especulativas levaram à bancarrota até a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, que foi fechada por oito dias. Em Minas Gerais, não surgiu um banco sequer entre 1896 e 1909”, ele destaca. Segundo Croce, Minas Gerais cresceu muito naquele período. “Minas tinha aquela marca do século 18 a perspectiva barroca, os escravos, a mineração. Mas esse desenvolvimento da Zona da Mata rompeu com essa tradição. A região contava com uma nova burguesia, que fez questão de romper antigos vínculos, fomentando uma modernidade. Foi a época em que a primeira usina hidrelétrica foi construída no Brasil, passando a fornecer energia para a indústria, e o evento se deu na Zona da Mata Mineira. Tudo isso, mais a abertura de crédito vivida na região, nos faz refletir sobre a repercussão que o Encilhamento teve em Minas Gerais. Apesar de pouco estudada, essa repercussão foi, em certos aspectos, até maior que no Rio e em São Paulo”, pontua. Novas diretrizes Nesse sentido, a tese de Marcus Croce demonstra que, apesar das complicações internas, as crises financeiras na primeira década republicana não comprometeram as relações de crédito do Brasil com o mercado financeiro mundial. “O cumprimento fiel dos itens contidos no contrato Funding-Loan, contrato firmado entre o governo brasileiro e banqueiros ingleses para negociação da dívida externa brasileira no momento mais crítico do período, é a maior prova disso. Apesar de terem perpassado quatro governos distintos, as crises financeiras da primeira década republicana sedimentaram os alicerces do do sistema bancário atual”, conclui o pesquisador. (Ewerton Martins Ribeiro)
Quando acabou a escravidão, o Império estava ameaçado. O café era o principal produto do Brasil. Muitos fazendeiros já vinham adiando a falência iminente, e culparam o governo por seus prejuízos relacionados à abolição. Aproveitaram a oportunidade para pleitear indenização, justificada pelas perdas geradas pelo fim da escravidão. “E, de outro lado, ainda havia a pressão republicana. Esses cafeeiros estavam muito endividados com os banqueiros. E os banqueiros pressionavam o governo, com medo de calote. Era pressão de todo lado”, contextualiza Marcus Croce.
Um aspecto esmiuçado pela tese de Marcus Croce é a importância que teve a cafeicultura, além da política econômica do Encilhamento, como fator determinante na formação e desintegração vivida pelo sistema bancário de Minas Gerais entre 1887 e 1900. “Originalmente uma política monetária expansionista, o Encilhamento começou a sofrer ajustes no ano de 1894, inclusive em função de uma desvalorização do café no mercado internacional. Surgiram a crise financeira e os conflitos militares, em especial a Guerra de Canudos, que movimentou grande contingente militar.”
Minas Gerais participou intensamente também das ações que possibilitaram a superação do Encilhamento. A Zona da Mata, na época importante polo periférico exportador de café, diversificou seus investimentos e consolidou um sistema financeiro, industrial, comercial e agrícola a partir de capitais internos. “Na verdade, estudiosos que têm analisado mais recentemente essa conjuntura têm dito que o Encilhamento não foi apenas uma bolha especulativa, mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, fator que possibilitou importantes empreendimentos, que contribuíram, no longo prazo, de forma significativa para o desenvolvimento econômico brasileiro. É um cenário complexo e ambíguo”, salienta o pesquisador.
Em 1903, foi realizado em Belo Horizonte o Congresso Agrícola, Industrial e Comercial de Minas Gerais. As discussões e propostas apresentadas nesse encontro, com o objetivo de diagnosticar e solucionar o quadro negativo em que economia mineira se encontrava devido às consequências das crises financeiras da primeira década republicana, geraram as diretrizes para dinâmica do setor bancário mineiro. “Dessa reunião saiu toda a base para a nova plataforma. Foi o momento decisivo para o diagnóstico e a apresentação de propostas de desenvolvimento estratégico para a economia mineira.”