O que é a Copa da exceção? E como isso acontece? Algumas mudanças no ordenamento podem permanecer? Pode-se dizer que isso indica novas formas de ação do poder político-econômico? Fale, por favor, um pouco mais do estado de exceção. O uso de medidas provisórias se enquadra de certa forma nesse raciocínio? Que outros autores tratam do assunto? O geógrafo David Harvey, por sua vez, mostra de que forma o capitalismo vê a cidade como mercadoria, e não mais enquanto simples espaço de troca, como dita o pensamento econômico clássico. Locais, situações e pessoas são tratados diferentemente de acordo com a potencialidade de produção de lucro que nelas se percebe. Algumas zonas urbanas recebem “proteção” do Estado, enquanto outras são completamente abandonadas. Outras ainda são reconfiguradas de acordo com a lógica do capital, que é muito mais inteligente que no começo do século passado. No Brasil, por exemplo, o capital explora o sonho dourado de uma Copa de todo mundo. Essa é a forma de dominação na sociedade do espetáculo, como Guy Débord descobriu. Os vínculos de submissão existem, são firmes, mas não estão baseados diretamente na violência ou na coerção, e sim no convencimento das pessoas de que o sistema capitalista é não apenas o melhor, mas o único possível diante da realidade que vivemos. Na sociedade do espetáculo, todo controle é autocontrole. Antonio Negri e Michael Hardt, no livro Multidão, segundo de uma trilogia, propõem contra a exceção permanente a criação de um novo sujeito político, que não seja mais o povo. Para eles, o povo soberano é uma ideologia homogeneizante e não uma vivência real. Ao contrário, as pessoas que integram a multidão são diferentes entre si, mantendo suas singularidades, mas tendo como projeto comum o aprofundamento da democracia. Nessa linha, nosso grupo de pesquisa tenta repensar conceitos que não funcionam atualmente, mas continuam criando subjetividades submissas, tais como soberania, partidos e representação política. Há uma crise de legitimidade no mundo contemporâneo, e o estado de exceção é sintoma disso. Ele só se instaura porque não há qualquer legitimidade no uso violento que se faz do poder. Cabe a uma democracia radical reconstruir os vínculos sociais tendo em mente essas críticas, profanando o “mundo sagrado” do poder político-econômico capitalista. (Itamar Rigueira Jr.)
A realização da Copa do Mundo de futebol no Brasil traz à tona questões que transcendem o esporte ou o espetáculo. Por exemplo, um megaevento como esse é capaz de mudar o ordenamento jurídico do país. A banalização do estado de exceção nas democracias é um dos temas de seminário que está sendo realizado esta semana (13 a 15 de maio) na Faculdade de Direito. E é tratada nesta entrevista [publicada em versão reduzida na edição desta semana do Boletim UFMG] pelo professor de Filosofia do Direito Andityas Soares de Moura Costa Matos, coordenador do grupo de pesquisa O Estado de Exceção no Brasil Contemporâneo.
Quando se fala em estado de exceção, se pensa em ditadura. Mas esse dualismo é superficial, já que a exceção hoje é uma estratégia das próprias democracias contemporâneas. O Brasil é um bom exemplo. Ainda que aqui se adotem procedimentos constitucionais, existem espaços e momentos em que estruturas autoritárias, sobreviventes de ditaduras ou que têm a ver com formas econômicas excludentes, se infiltram no Estado. E determinam decisões que em nada se coadunam com a ideia de soberania popular e um Estado democrático e igualitário. O governo brasileiro – e não se trata de crítica a qualquer partido ou gestão em particular – valoriza pouco a participação popular e espaços de decisão não oficiais. Por isso, entre outras razões, megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas têm potencial muito grande de trazer à tona situações de exceção.
A Copa do Mundo no Brasil, a mais cara da história, exige gastos de 33 bilhões de dólares. E isso sem qualquer consulta efetiva à sociedade. Será que o povo brasileiro, por mais que ame futebol, escolheria, se consultado, aplicar todo esse dinheiro num evento que vai durar um mês? Um Estado supostamente democrático abriga um evento com a finalidade clara de angariar lucros para uma entidade privada e seus parceiros comerciais sob o simbolismo de que o Brasil é o país do futebol. Para tanto são tomadas várias medidas que vulneram o ordenamento jurídico brasileiro. Esse é o movimento da exceção, com a suspensão da legalidade em função dos interesses econômicos. Por exemplo: a Lei Geral da Copa suspende normas que protegem o idoso, a criança e o adolescente. E revoga a proibição de bebidas alcoólicas nos estádios da Copa.
É real a possibilidade de que se aprove a tipificação do crime de “terrorismo”. Trata-se de tipo penal aberto, sem delimitadores conceituais claros. Essa nova figura pode ser usada politicamente para demonizar e amedrontar movimentos sociais. Outro exemplo: as normas que suspendem em certas situações a lei de licitações devem continuar no ordenamento. Percebe-se que já não funciona a ideia dos juristas do início do século 20 de que a exceção salvaguardaria uma situação de fato para depois se voltar à normalidade. Ou seja, desapareceu a dialética entre normalidade e exceção, havendo apenas uma espécie de “exceção permanente”.
Há também a questão da remoção de comunidades...
São modificações aparentemente normais, mas que não têm fundamento na normalidade institucional ou na ideia de democracia popular. Grupos sociais foram violentamente removidos de zonas em que se dará a exploração econômica pela Fifa. Comunidades do Rio de Janeiro que não poderiam ser classificadas como favelas caóticas, que se mantinham com nível de qualidade de vida bastante razoável e antigos laços de solidariedade, nas quais havia associações de bairro, comércio, escolas, da noite para o dia foram removidas graças a verdadeiras operações de “higienização urbana”. Outro exemplo cotidiano é a questão da mobilidade. As cidades-sedes teriam seus sistemas de transporte transformados para melhor servir os cidadãos, mas as notícias são de que apenas uma pequena parte dessas obras serão efetivadas.
O poder político-econômico já não adota atitudes visivelmente autoritárias. Ao contrário, vai conquistando espaços em que a legalidade normal não se aplica, sempre com a ajuda de outros poderes, como a mídia, que cria a falsa imagem de uma Copa pacificada, e não de uma situação de exceção. Com esse discurso espetacular de legitimidade, vemos o Brasil sendo colonizado novamente. É como no Descobrimento: chegam os europeus numa caravela, oferecem espelhos e outras quinquilharias aos índios e levam o ouro, o pau-brasil. A semelhança é clara: uma instituição internacional nos oferece um espetáculo, cria uma série de dificuldades no ordenamento jurídico-social, acirra o enfrentamento entre governo e população e assim implanta um novo colonialismo , muito mais requintado porque invisível para a maioria da população.
Na doutrina tradicional do Direito Constitucional há pré-requisitos para a decretação do estado de exceção. Se o Estado sofre ameaça grave e urgente, os trâmites decisórios normais precisam ser suspensos. Surgiu na república romana a noção de que em alguns momentos a normalidade não consegue governar. Mas, no mundo contemporâneo, como lembra o [filósofo italiano] Giorgio Agamben, o estado de exceção declarado formalmente segundo regras constitucionais deixou de existir. Somos governados constantemente sob argumentos da urgência e emergência, sem qualquer controle popular. Saindo da Copa: decisões concretas de política econômica no Brasil, como em outros países, raramente são tomadas pelo Parlamento, e sim por órgãos técnicos, geralmente fechados em si, como o Banco Central, sem qualquer participação popular. Há sempre uma situação de emergência, no cenário internacional, por exemplo, que não permite possibilidades de consulta aos cidadãos.
Sim. A medida provisória é um artifício que foi criado para situações excepcionais e urgentes, mas que não é usada dessa forma. Mantém-se formalmente com uma capa de legalidade, mas não tem legitimidade. Carl Schmitt, autor alemão que não é bem visto em certos círculos acadêmicos porque esteve ligado ao regime nazista, tem uma definição modelar: “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Assim, o soberano pode não ser aquele que está indicado pela Constituição, mas quem decide efetivamente na última instância. Aproveitando essa ideia, Agamben nota que no mundo contemporâneo temos uma exceção econômica permanente cujo soberano é o poder financeiro privado, o qual, no Brasil, muitas medidas provisórias vêm protegendo há tempos. Sempre que há interesse de grandes corporações, suspende-se a legalidade, ou seja, as normas jurídicas que vigoram na normalidade, e o poder econômico monopolista, sem nenhuma legitimidade, se impõe sobre a comunidade.
Carl Schmitt e Walter Benjamin são autores clássicos. A jornalista canadense Naomi Klein, em seu livro A doutrina do choque, afirma que o capitalismo se aproveita da comoção gerada pelos desastres naturais e artificiais para se desenvolver. Foi assim com o furacão Katrina, em Nova Orleans, e com o tsunami na Ásia. Medidas políticas neoliberais autoritárias foram tomadas depois dessas catástrofes e permanecem ativas até hoje. Sabemos que indivíduos e sociedades não conseguem pensar bem em momentos de crise. É urgente resolver as situações. Assim, grupos dominantes se aproveitam para impor seu poderio econômico, seja usurpando ou escravizando o poder político, o qual promoverá modificações jurídico-sociais que não serão temporárias.
Quais são as propostas para se reverter esse quadro?
Temos que trabalhar em várias frentes. Em primeiro lugar, as resistências têm que se dar em rede, já que é assim que se organiza o poder global. Movimentos como o Occupy, nos Estados Unidos, os Indignados espanhóis e as manifestações de junho de 2013, no Brasil, são horizontais, o que é positivo, assim como o fato de não terem uma única bandeira, o que dificulta sua cooptação pelo poder político. Cada vez mais ganha força a ideia de diminuir a distância entre governantes e governados, questionando-se assim estruturas de poder arcaicas que paradoxalmente escondem uma nova forma de poder, que é a econômico-financeira. Trazer essa discussão à tona com a Copa é importante porque ajuda a criar um novo tipo de participação, que não se concentra em partidos ou outras estruturas que aceitam o jogo do capital, mas na tentativa – e não sei exatamente como, temos que viver isso para descobrir – de aproximar as pessoas do poder. O poder não precisa estar separado da sociedade, como ocorre no mundo do Estado e do capital. Quando as pessoas vão para as ruas denunciar a representação política, as hierarquias sociais tradicionais e o poder do dinheiro, elas acabam realizando uma tarefa crítica e mais revolucionária do que se imagina. O poder político-econômico capitalista corre grandes riscos quando as pessoas percebem que ele não é necessário nem eterno.