Nas águas ácidas do Rio Negro, em plena floresta amazônica, pesquisadores da UFMG encontraram um vírus gigante, descoberta que abre vastos caminhos no universo dos seres microscópicos. Não bastassem suas proporções incomuns, o Samba Vírus – como foi batizado – possui genoma complexo, com genes só encontrados em células e que nenhum vírus de outra espécie codifica. Além disso, sobrevive em ecossistema especial cuja dinâmica parece garantir uma existência equilibrada e harmônica com a ameba que o abriga e com um tipo pequeno de vírus que o acompanha de perto. Maior vírus isolado no país, o Samba também detém o maior genoma de vírus já sequenciado no Brasil, informa o professor Jônatas Abrahão, do Departamento de Microbiologia do ICB, coordenador do grupo responsável pela pesquisa, cujos resultados acabam de ser publicados na revista Virology Journal. Os dados chegam à comunidade acadêmica exatamente dez anos depois da publicação do estudo francês que caracterizou o Acanthamoeba polyphaga mimivirus (APMV), primeiro vírus gigante a ser identificado no mundo. Segundo Jônatas Abrahão, quando isolado, ainda no começo dos anos 1990, o APMV foi confundido com uma bactéria, e só na década seguinte foi corretamente caracterizado, dando início a uma série de estudos genéticos que revelaram a existência dessa nova família – os mimivírus. “Comparada ao vírus da poliomielite, a proporção seria a mesma que entre um ser humano e o maior dinossauro já descrito no planeta”, estima o professor, referindo-se ao tamanho dos vírus gigantes, que oferecem estímulo à pesquisa não apenas pela dimensão, mas sobretudo pela complexidade genômica e estrutural. O genoma do Samba tem 50 mil pares de bases a mais que o do vírus protótipo APMV, que possui cerca de 1,2 milhão de pares de bases. “Percentualmente a diferença parece pequena, mas pode corresponder a diversos novos genes”, diz o professor. Tal diferença pode indicar, por exemplo, fatores relacionados ao ambiente em que ele foi isolado, como a intensa insolação e a acidez do rio, que é causada pelos resíduos de decomposição da floresta. Rio Negro “É um mundo novo. O Rio Negro Vírus, como passamos a chamar essas partículas, assim como os outros virófagos previamente descritos, quebrou paradigmas, mudou nossa visão sobre virologia”, completa Abrahão. Sua ação foi testada contra o APMV e, de fato, foi possível perceber que esse virófago pode causar anomalias na formação e reduzir enormemente a multiplicação do mimivírus. “Nossa hipótese é que o Rio Negro Vírus tem papel ecológico ao controlar a expansão do Samba Vírus, pois se houvesse vírus gigantes afetando amebas, livremente e de forma intensa, estas poderiam se extinguir localmente, e os vírus gigantes desapareceriam, por falta de hospedeiro”, explica Jônatas Abrahão. A pesquisa sugere que os três elementos – ameba, vírus gigante e virófago – estejam associados nesse ecossistema especial para manter uma coexistência equilibrada. Pneumonia “Temos encontrado um percentual de vírus maior no isolamento respiratório do que em outros setores do hospital”, revela o professor do ICB, lembrando que em 50% dos casos de pneumonia registrados no mundo o agente etiológico não é conhecido. “Os mimivírus estão entrando nesse debate porque provavelmente fazem parte de uma parcela – pequena ou grande – desses 50% cuja causa é desconhecida. Embora não se possa associar o Samba à pneumonia, os vírus gigantes não podem ser descartados no estudo das infecções em hospitais”, alerta o professor. Ele explica que as amebas – hospedeiras dos mimivírus – por estarem presentes nas águas, no solo e em ambientes urbanos, até mesmo dentro de hospitais, em teoria, podem funcionar como plataformas biológicas de multiplicação de vírus gigantes, como já foi demonstrado em algumas bactérias. Segundo Abrahão, de forma geral as amebas são extremamente resistentes a agentes químicos e físicos de controle, como desinfetantes e raios ultravioletas utilizados em alguns ambientes hospitalares. Prospecção Outros biomas figuram no trabalho de prospecção liderado por Abrahão. “Estamos provando que os vírus gigantes existem em todos os ambientes – temos coletado amostras em lagoas urbanas e de solos em várias regiões do país”, informa. Entre os mimivírus já isolados, mas ainda não caracterizados geneticamente pelo grupo, estão o Niemayer Vírus, encontrado na Lagoa da Pampulha, em frente ao Museu de Artes; e o Cipó Vírus, localizado na Serra do Cipó. “Onde há matéria orgânica, como lagoas, há amebas. E amebas podem conter vírus gigantes. A lógica é essa”, diz o pesquisador, que também está investigando a presença desses microrganismos no Pantanal mato-grossense. Os três domínios são Eubacteria, que inclui as bactérias; Archaea, grupo que congrega os procariontes não enquadrados na classificação anterior; e Eukaria, que reúne todos os eucariontes, ou seres vivos com núcleo celular organizado. Tal classificação não inclui os vírus, devido à ausência neles de algumas das características definidoras de vida. “A existência dos vírus gigantes fortaleceu a proposta de um quarto domínio”, comenta Jônatas Abrahão. Artigo: Samba virus: a novel mimivirus from a giant rain forest, the Brazilian Amazon (Ana Rita Araújo)
Outro aspecto focalizado pela pesquisa foi a inesperada presença – no entorno do Samba, dentro da ameba que ele habita – de partículas negras, que se mostraram eletrodensas na microscopia. “São virófagos já descritos na literatura como um vírus que infecta vírus gigantes”, explica o pesquisador.
O grupo liderado por Abrahão também desenvolve pesquisa em parceria com a professora Wanessa Clemente, do Hospital das Clínicas da UFMG, em que se investiga a presença de vírus gigantes em setores de isolamento respiratório, onde ficam internados pacientes com infecções respiratórias graves ou específicas, como tuberculose e pneumonia.
A descoberta do Samba Vírus não surgiu por acaso. Interessado no tema, Jônatas Abrahão (em foto de Foca Lisboa) organizou em 2011 uma expedição a Manaus, para fazer prospecção de vírus gigantes. “Percorremos cerca de 50 quilômetros no Rio Negro, coletando amostras”, relembra o pesquisador, destacando que, embora a Amazônia seja símbolo da beleza e da biodiversidade no país, quase não há dados sobre vírus relacionados à região.
Quarto domínio
Até a descoberta dos mimivírus, os vírus eram seres que não se enquadravam na classificação proposta pela ciência para entender as linhagens primárias de vida. Estudo elaborado no final dos anos 1970, nos Estados Unidos, a respeito dos primeiros passos da história evolutiva da vida, a partir de sequências de DNA, apresentou tabela com uma matriz de similaridade entre trechos das sequências do RNA ribossomal de diferentes organismos e dividiu as formas de vida celular em três grupos, denominados domínios da vida.
Autores: Rafael K. Campos, Paulo V. Boratto, Felipe L. Assis, Eric RGR Aguiar, Lorena CF Silva, Jonas D. Albarnaz, Fabio P. Dornas, Giliane S. Trindade, Paulo P. Ferreira, João T. Marques, Catherine Robert, Didier Raoult, Erna G. Kroon, Bernard La Scola, Jônatas S. Abrahão.
À esquerda, Samba Vírus, que na imagem à direita está em várias etapas de formação. Os pequenos pontos que o cercam são o vírus Rio Negro. A pesquisa sugere associação em ecossistema especial para manter coexistência equilibrada na ameba que abriga ambos os tipos de vírus