Ciganos, quilombolas e integrantes de ocupações urbanas e de coletivos de trabalhadores são “clientes” de professores e estudantes da Escola de Arquitetura. As pesquisas do grupo Morar de Outras Maneiras (MOM) sobre processos e técnicas construtivas e planejamento urbano são revertidas em assessoria a pessoas e comunidades que dispõem de poucas informações para construir e conformar seus espaços cotidianos, sejam casas e outras edificações, seja o próprio ambiente urbano. Tradicionalmente, os arquitetos atendem ao Estado ou às elites, e mesmo quando se trata de programas habitacionais, o cliente é o Estado, lembra a professora Silke Kapp, coordenadora do MOM, desde que o grupo foi criado, há dez anos. “Na Europa, a partir da década de 1960, arquitetos começaram a projetar e construir com os moradores em experiências participativas e, em alguns casos, os movimentos populares até conseguiram certa autonomia. No Brasil, houve experiências importantes nessa linha nos anos 80, em São Paulo, Porto Alegre e Ipatinga, por exemplo. Infelizmente, essa abordagem ganha força quando o dinheiro está escasso, mas perde com programas como o Minha Casa Minha Vida, que acabam se tornando investimentos para fortalecer a chamada indústria da construção, beneficiando do capital privado. Ao capital não interessa que os moradores ou os movimentos sociais comandem o processo”, comenta Silke Kapp. As pesquisas do MOM tentam beneficiar pessoas que produzem suas moradias informalmente, com poucos recursos financeiros, técnicos e jurídicos, ou que se submetem a empreendimentos formais nos quais têm pouco poder de decisão. Segundo a coordenadora, o grupo tem sido procurado por associações e movimentos populares, mas também se aproxima, por iniciativa própria, de espaços sem organização política interna ou apoio institucional externo, como assentamentos rurais, loteamentos periféricos ou favelas fora da zona sul de Belo Horizonte, por exemplo. O trabalho começa com uma pesquisa de campo qualitativa, “mais sociológica ou antropológica que técnica”. Longas entrevistas ajudam a conhecer a história da comunidade e entender como eles organizam o espaço, como negociam e tomam decisões, se dependem ou não, e em que medida, de instituições. “Nossa tentativa é de descobrir como fornecer apoio sem criar dependência”, afirma Silke Kapp, que é arquiteta com mestrado e doutorado em filosofia. Uma das experiências recentes do grupo Morar de Outras Maneiras foi com a comunidade de ciganos do bairro São Gabriel, da etnia Kalon. De acordo com a coordenadora, eles precisavam de documentos técnicos que embasassem o processo de regularização fundiária relacionado a uma área da antiga rede ferroviária, cuja posse foi certificada pela Secretaria de Patrimônio da União. A análise e o parecer dos pesquisadores da UFMG mostraram que apenas uma parte dos 23 mil metros quadrados de terreno era aproveitável e que os ciganos precisavam de mais terras, que já estão prometidas. No quilombo Sapé, em Brumadinho, o grupo ajudou na mobilização da comunidade, que negociava com Furnas, a título de contrapartida ambiental por uma obra na região, a construção de um centro comunitário. “A proposta inicial da empresa era inadequada e, por isso, fizemos um projeto coletivo, envolvendo os moradores para atender às suas necessidades”, explica Silke Kapp. Espaços de trabalho Viviane concluiu que, no caso desses grupos, quanto mais separados os espaços de moradia (reprodução) e de trabalho (produção), mais precárias são as condições de vida. Na comunidade Noiva do Cordeiro, em Belo Vale (MG), os homens, exímios construtores, partem para cidades maiores em busca de trabalho, enquanto as mulheres vivem e trabalham em construções de uso coletivo, em hortas e lavouras comunitárias. “Elas também costuram para a comunidade e para clientes externos e são conscientes de todo o processo. Dão suporte umas às outras e têm em mente que naquele lugar ninguém vai passar fome”, conta Viviane. Ela acrescenta que o grupo lança mão de mutirões, busca informações antes de construir e se organiza para que todos possam contribuir. A experiência dos triadores, segundo a pesquisadora, é oposta: a comunidade concentra as atividades de produção num galpão isolado e é a que se mostra mais vulnerável. Ocupações “A presença do arquiteto qualifica a organização desses espaços, facilita o respeito à legislação, o que confere legitimidade e força aos movimentos nas negociações com o poder público”, afirma Tiago Lourenço, que tem atuado como voluntário nas ocupações. Entre os interesses das comunidades está a definição de um traçado viário, que possibilita, a princípio, a circulação de veículos, principalmente ambulâncias; futuramente, facilitará a urbanização (instalação de esgoto, drenagem, iluminação pública) e a regularização fundiária. De acordo com o pesquisador, as condicionantes urbanísticas e ambientais definidas pela legislação não são acessíveis para leigos, e a intervenção do arquiteto possibilita organizar o discurso técnico de forma que as pessoas possam lidar com essas questões. “Como a infraestrutura é precária, muitas vezes é preciso encontrar soluções alternativas para o esgotamento sanitário, por exemplo, para que sejam evitados impactos sobre o terreno, até que o poder público atue”, diz Tiago Lourenço. Ele chama a atenção para a importância de se ter em mente que as leis urbanas e ambientais são feitas para bairros e moradias de classe média e muitas vezes não fazem sentido para outras formas de organização social e familiar. “As regras reforçam a lógica de segregação. Grupos como os das ocupações têm necessidades imediatas e não conseguem entender por que não podem tomar certas medidas. Minha preocupação ao levar esse trabalho para o ambiente acadêmico é rever o conceito de emancipação e nossas formas de atuar com esses grupos, procurando entender a influência dos embates políticos que permeiam a vida nas ocupações”, conclui Tiago. O Morar de Outras Maneiras é grupo de pesquisa do CNPq, sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU), com projetos financiados pela Finep, pelo CNPq e pela Fapemig. (Itamar Rigueira Jr.)
Uma das pesquisas desenvolvidas no âmbito do MOM, que rendeu tese de doutorado defendida neste ano, analisou as formas de organização do espaço por coletivos de trabalho. A arquiteta Viviane Zerlotini estudou a fundo quatro grupos: de costureiras, bordadeiras, artesãos e triadores (que fazem a triagem de resíduos sólidos). Sua experiência como professora universitária mostrava que as soluções oferecidas pelos trabalhos acadêmicos e profissionais para esse tipo de demandas populares reproduziam “o padrão dominante, na forma de espaços limpos, organizados, funcionalizados”. Ela queria entender a lógica e as necessidades de cooperativas e associações de trabalhadores.
O grupo Morar de Outras Maneiras está envolvido também com assessoria a movimentos sociais em ocupações urbanas. O historiador e arquiteto Tiago Castelo Branco Lourenço aplica, em trabalho de mestrado, sua experiência nas ocupações Dandara (bairro Céu Azul), Eliane Silva (Barreiro) e Emanuel Guarani-Kaiowá (Contagem).