O abuso sexual perpetrado dentro de casa, quase sempre pelo próprio pai ou padrasto, emudece a maioria das vítimas. Mas há também casos em que a criança aproveita a situação para chantagear o abusador, fazer pactos com ele e manipular o ambiente familiar. Esse desdobramento menos conhecido do problema é revelado por um dos estudos de caso relatados no livro Tramas da perversão – A violência sexual intrafamiliar (Escuta Editora), organizado pela professora Cassandra Pereira França [em foto de Diogo Domingues/UFMG), do Departamento de Psicologia, da Fafich. A obra pretende trazer à tona e pôr em discussão os enigmas da violência sexual no seio da família, em uma época em que aumentam as consultas a psicólogos e psicanalistas motivadas por abusos contra crianças e adolescentes. “Nosso principal objetivo foi produzir material científico para apoiar a compreensão e a atuação de médicos, psicólogos, advogados e conselheiros tutelares”, afirma Cassandra França, que coordena o Projeto Cavas (Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual), da UFMG. Ela explica que, para a psicanálise, o pai (ou o par parental) desempenha, no âmbito da família, o papel da barreira, da proibição, que ensina o sujeito a obedecer a regras e a respeitar tabus, como o que veta o incesto. “No caso do abuso intrafamiliar, o guardião dessas regras é o primeiro a quebrá-las, o que obviamente tem consequências devastadoras para a vítima”, salienta a professora. O livro aborda também o papel da mãe no abuso sexual dentro de casa. Estudos revelam que a mulher tem papel significativo quando um dia foi vítima de alguma forma de abuso. Muitas simplesmente não conseguem ajudar, e há aquelas que procuram companheiros com perfil de violentadores, que provavelmente vão repetir o que elas sofreram. “Nossa proposta é justamente entender fenômenos como esse para ajudar crianças e adolescentes a se livrarem do destino de se tornarem também abusadores”, diz Cassandra França, acrescentando que algumas vítimas transformam o trauma em compulsão sexual – por meio da prostituição, por exemplo – ou apelam às drogas, que anestesiam contra o sofrimento. Organizar afetos e ideias Os textos que compõem a obra tratam de aspectos como os “jogos da perversão”, expressos em diversas formas de contato dos adultos com o corpo da criança e que não são percebidos como sinal de abuso. Alguns estudos descrevem mecanismos de identificação da criança com o agressor. “A vítima tende a se identificar com o pai agressor, por exemplo, como um recurso inconsciente que lhe possibilita continuar amando seu pai. Nosso esforço é o de revelar os arranjos psíquicos feitos pela criança abusada e desacreditada por outros parentes para seguir obedecendo ao pai abusador”, esclarece Cassandra França. Ela comenta também que há cada vez mais convicção de que os abusos contra meninos não são tão menos numerosos como se pensa; há subnotificação dos casos, em razão de machismo e preconceitos. Questões intrigantes Boa parte dos capítulos de Tramas da perversão foram produzidos como desdobramentos de pesquisas de mestrado e doutorado realizadas no âmbito do Projeto Cavas. Como explica Cassandra França na introdução do livro, o objetivo da iniciativa – que completa dez anos em 2015 – era, a princípio, preparar profissionais recém-formados para atender, na clínica social do Departamento de Psicologia, o crescente número de vítimas de violência sexual infantojuvenil, que apareciam cada vez em maior número. “No entanto, com o passar dos anos, tantas questões intrigantes foram se acumulando, que foi preciso sistematizar nossos estudos, implantar veios de pesquisa e aumentar a equipe técnica”, escreve a organizadora. Ainda em seu texto de apresentação, Cassandra França explica que o foco de interesse do grupo se ampliou para o entorno da criança violentada: “Queremos entender melhor os pactos de segredo nas famílias incestuosas, as reverberações psíquicas advindas da descoberta pelos filhos de que têm um pai pedófilo, as consequências das tramas de vingança que levam a alienações parentais e as fragilidades narcísicas da mãe e/ou da criança, que as tornam completamente aprisionadas nos jogos de sedução sexual familiar.” Livro: Tramas da perversão – A violência sexual intrafamiliar (Itamar Rigueira Jr./Boletim 1884)
A organizadora enfatiza a capacidade da psicanálise de lidar com o problema. “O vínculo transferencial com o analista possibilita que o jovem projete a vivência e expurgue a dor. Ele dramatiza o que sofreu passivamente e recebe interpretações que o ajudam a organizar afetos e ideias e a liberar-se daquelas experiências.” Mas a professora ressalta também que é preciso reconhecer que as ferramentas do analista são “parcialmente fecundas”, ou seja, ele não dispõe de todos os recursos para “extrair a verdade dos fatos e curar as sequelas”.
Organizado por Cassandra Pereira França
Escuta Editora
232 páginas / R$ 54 (preço de capa)