Fotos: Silvia Dalben/Divulgação |
A cultura africana chegou ao Brasil por um caminho sofrido, nos porões dos navios negreiros da escravidão. Aqui, sofreu influência dos povos indígenas e dos colonizadores europeus. Mas, movida pela fé, resistiu bravamente. O resultado dessa trajetória de luta foi uma nova cultura extremamente rica, a cultura afro-brasileira. Para celebrar a diversidade cultural do país às vésperas de uma de suas maiores festividades, o Carnaval, as últimas palestras do Festival de Verão propiciaram debate sobre os diferentes aspectos da cultura afro-brasileira. O encontro ocorreu na manhã desta sexta-feira, 13 de fevereiro, no Conservatório UFMG. Os convidados foram o professor Adélcio de Sousa Cruz, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), e Ridalvo Felix de Araújo, mestre em Estudos Literários pela UFMG. Adélcio de Sousa falou sobre a representação da cultura negra na literatura, na música e no cinema. Para o professor, a descrição do povo negro nas artes é altamente marcada por suas performances. “A corporalidade e a oralidade são características muito presentes nessas representações. Fala-se muito sobre a linguagem e o corpo negro.” O professor explicou ainda que as representações do povo negro quase sempre reproduzem estereótipos. “A representação do negro provoca apenas duas emoções: riso ou pânico. Quando o cinema nos mostra um personagem negro, ou ele é perigoso ou é atrapalhado.” Para reforçar seu argumento, ele recorda a vez em que foi ao cinema assistir à estreia do filme Cidade de Deus, em 2002. “Nas cenas da infância, quando o menino negro Zezinho era chamado de horroroso pelas outras crianças, todos se acabavam de rir. Mas quando ele provoca uma chacina em um motel, a sala foi tomada por um silêncio perturbador”, conta. O professor da UFV lembrou que esses estereótipos estão enraizados na mentalidade das pessoas e são ensinados até na escola. Como exemplo, ele citou o livro O cortiço, de Aluisio de Azevedo, que descreve o personagem negro João Romão como um malandro trambiqueiro, indigno de confiança. “Esse livro é muito cobrado em vestibulares de todo o país, mas a representação presente nele ajuda a naturalizar o preconceito contra o negro. Também temos muitos livros em que as religiões africanas são tratadas como diabólicas”, disse. De acordo com Adélcio, diferentemente da rejeição que sofreu no passado, a cultura negra hoje se tornou objeto de apropriação. “As pessoas querem aproveitar a cultura negra sem o negro. O afro é chique, o negro é outra história”, afirma. Para o professor, no que se refere a preconceito racial, pouco se avançou desde o fim da escravidão. “Basta olhar o caso dos Estados Unidos, um dos países mais racistas do mundo: em 1814, os negros lá eram escravos; em 1914, vítimas de linchamento; em 2014, a maior população carcerária do país.” Como forma de combate, Adélcio conta que o povo negro encontrou nas artes uma de suas maiores ferramentas de resistência: “Nos tempos de escravidão, os negros faziam poemas narrando os horrores das senzalas e recordando as tradições africanas. Hoje temos o rap como forma de protesto, representado por nomes como Racionais MC’s, Facção Central, Curumim, entre outros”, completa. Ritual tradicional Ridalvo afirmou que entre os membros do Congado existe uma devoção enorme a vários santos católicos, principalmente a Nossa Senhora do Rosário. “As histórias contam que um grupo de escravos encontrou uma santa boiando à beira de um rio e pediu permissão ao senhor para recolhê-la, mas ele proibiu e apenas ordenou aos escravos que construíssem uma igreja para ela. Quando a capela estava finalizada, o homem e sua família, todos brancos, recolheram a imagem e a levaram para lá. Mas no dia seguinte, a igreja amanheceu vazia e a santa foi encontrada boiando no rio. Isso aconteceu por vários dias, até que o senhor permitiu que seus escravos frequentassem a igreja para adorar Nossa Senhora. Por isso a devoção do povo negro”, conta. O pesquisador explicou também que há divisões entre os membros do Congado e que cada grupo tem sua função. “Na guarda estão os grupos de Candombe, Moçambique e outros que abrem o cortejo com música e dança. Já no reinado vêm o rei e a rainha do Congo, que são coroados durante o festejo.” Ele ressaltou que a hierarquia é importante para manter a raiz africana da tradição: “São os reinados africanos que se reestruturaram e se ressignificaram no Brasil”, comentou Ridalvo. Assim como a hierarquia, o pesquisador destacou a importância das cantigas para o Congado: “Os participantes não podem cantar qualquer cantiga porque elas têm um sentido sagrado, que deve ser adequado para o momento. O acesso à palavra é outra coisa muito importante, um membro não pode começar a cantar sem pedir licença”. A oralidade, por sinal, foi apontada por ele como um dos maiores símbolos de luta da cultura afro-brasileira: “As cantigas e orações são a nossa tradição oral que existe, resiste e persiste”, finalizou Ridalvo Felix de Araujo.
Símbolos de resistência dos povos afrodescendentes, as manifestações religiosas são um dos principais traços da cultura afro-brasileira. Uma das mais tradicionais é o Congado, tema de estudo do pesquisador Ridalvo Felix de Araujo. Há três anos acompanhando um grupo de mineiro de Candombe, ele falou do papel do canto, da dança e do ritmo no cortejo. “Quem vê pensa que os membros estão apenas dançando, cantando e batendo tambor, mas aquilo é uma filosofia. O congado é uma forma de reverenciar nossos ancestrais, de mostrar respeito às pessoas que nos antecederam e pedir sua proteção.”