A reportagem escrita em primeira pessoa não é novidade, nem mesmo no Brasil – João do Rio já fazia isso há um século. Mas ainda inspira certo estranhamento, sobretudo quando se pensa no jornalismo como suposto reduto da objetividade e do distanciamento, mais afinado com o texto em terceira pessoa. Certo mesmo é que o modelo de narrativa em que o repórter “aparece” para o leitor precisa ser melhor entendido. Foi o que moveu a pesquisa do jornalista Igor Lage Araújo Alves, que acaba de defender a dissertação Eu, repórter – Narradores em primeira pessoa nas reportagens de Trip, Tpm e Rolling Stone, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Fafich. Igor Lage logo superou a tentação inicial de comparar os dois modelos. “Meu intuito foi compreender o narrador em primeira pessoa em seus próprios termos, considerando as relações que ele se propõe a estabelecer com as realidades investigadas, com as mídias nas quais seu texto se inscreve, com o jornalismo, com os sujeitos envolvidos no processo de apuração e com o próprio leitor”, afirma o pesquisador. Para fins de análise, Igor definiu quatro formas de o repórter se colocar nos textos, que ele chamou de “manifestações”. Em uma delas, o narrador é o foco da narrativa e conta a história de sua própria perspectiva, assumindo retórica de cunho testemunhal. É o caso, por exemplo, do jornalista que passa uma temporada como morador de uma comunidade violenta. “O repórter quer ‘ver de dentro’, mas só consegue ‘ver de perto’. A própria condição de repórter o impede de penetrar a outra realidade. Será sempre um estrangeiro, alguém que não pertence àquele lugar”, explica o jornalista, que escolheu a Trip, a Tpm e a Rolling Stone em razão de contato anterior com as publicações e pela recorrência de matérias longas sobre cultura e comportamento. Discrição e credibilidade Igor Lage destaca também a “primeira pessoa da autoria”. Ele recorreu a Barthes e a Foucault para refletir sobre o lugar de autor. “Nesses casos, a assinatura do jornalista pode desempenhar funções de autor na medida em que opera como um lugar de agrupamento e de classificação dos textos e também de familiaridade para o leitor.” Ele encontra uma possível relação de tensão entre o nome do repórter e o da revista. “Essa disputa é um jogo de comadres, estratégia para fortalecer a imagem do repórter e, ao mesmo tempo, a da mídia jornalística”, diz Igor Lage. O último tipo de primeira pessoa definido pela pesquisa é a do plural. O narrador-repórter diz nós tanto para propor compartilhamento de algo com o leitor, quanto para se referir a seus colegas de revista, realçando um discurso autorreferente da própria publicação, sempre com a ideia de aproximação do leitor. “O nós inclusivo sugere que o leitor veja algo de si na revista; a primeira pessoa exclusiva possibilita que a publicação reforce sua identidade, como forma de se tornar mais atrativa”, explica. Testemunho “O testemunho dos sobreviventes parece ter assumido posição de exemplaridade. Os relatos do holocausto gozam de certa blindagem ética e moral, e isso pode estar sendo apropriado por outras modalidades de testemunho, como o jornalístico”, explica o autor da dissertação. O jornalista salienta que um de seus intuitos ao abordar a narração em primeira pessoa como estratégia textual foi mostrar a pluralidade dos modos de narrar do jornalismo. “Essa característica pode apontar para uma pluralidade também dos modos de produzir conhecimento e de investigar o mundo”, diz. “Vejo a primeira pessoa não como algo excepcional, um gesto de resistência ou um grito criativo do repórter. É mais uma forma legítima de narrar jornalisticamente o mundo. É importante entender a potencialidade desse e de outros recursos para que o jornalismo possa contar cada vez melhor suas histórias”, conclui Igor Lage. (Itamar Rigueira Jr./Boletim 1907)
Em outras situações, a referência do repórter a si mesmo visa apenas revelar presença na cena do acontecimento – o foco está no entrevistado. O objetivo, então, é dar mais legitimidade e credibilidade ao relato, revelando o processo de apuração, entre outros recursos. “Essa primeira pessoa é mais discreta, mas não deixa de ser testemunhal. E demonstra que o testemunho do repórter não precisa ser profundamente autorreferencial”, explica o pesquisador.
Igor Lage lança mão, entre outras, de referência à revalorização do discurso testemunhal após o holocausto judeu, destacada pela crítica literária argentina Beatriz Sarlo. Ele relaciona os relatos dos sobreviventes, consideradas as devidas proporções, com o testemunho do narrador em primeira pessoa do jornalismo.
Dissertação: Eu, repórter: Narradores em primeira pessoa nas reportagens de Trip, Tpm e Rolling Stone
De Igor Lage Araújo Alves
Orientador: Bruno Souza Leal
Defesa em 25 de maio, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social