Luana Macieira/UFMG Caso seja aprovado o Estatuto da Família, projeto de lei de autoria do deputado Anderson Ferreira, o conceito de família ficará restrito aos casais formados por um homem e uma mulher. O segundo artigo do estatuto, que está na pauta do Congresso e deve ir à votação em breve, define a entidade familiar como “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Se, no Brasil, a ideia de arranjos familiares plurais é ameaçada por um projeto de lei, nos Estados Unidos, a Suprema Corte determinou, ontem, dia 26, em sessão celebrada em todo o mundo, a legalização do casamento entre homossexuais nos 50 estados americanos, incluindo os 13 que ainda o proibiam. O Portal UFMG conversou com o professor Marcelo Maciel Ramos [foto], do Departamento de Direito do Trabalho e Introdução ao Estudo do Direito, sobre as implicações sociais da aprovação do Estatuto da Família. Ele lembra que formação de núcleos familiares com base na união de homossexuais já é uma realidade. “Não estamos falando de privilégios. Não se trata de oferecer aos homossexuais vantagens sobre as famílias tradicionais. Estamos falando de reconhecer juridicamente direitos que as outras famílias já têm assegurados”, afirma Marcelo Maciel Ramos. Coordenador, na Faculdade de Direito, do projeto Diverso – Direitos e Diversidades, que acolhe e oferece orientação jurídica e psicossocial a membros da comunidade LGBT vítimas de violência e discriminação, o professor contextualiza, nesta entrevista, os avanços no reconhecimento dos direitos dos homossexuais no Brasil, explica a diferença entre união civil e casamento e adverte que não é papel do Direito desfazer tensões sociais ou suprimir a homofobia "e, sim, administrar esses conflitos e estar comprometido com os princípios da igualdade, da liberdade, da não discriminação e da solidariedade". Por que se tem falado tanto em novos arranjos familiares? Qual o perfil desses grupos conservadores? O projeto do Estatuto da Família prevê que a família deve ser constituída por um homem e uma mulher, com seus filhos, ou o pai ou a mãe e seus filhos, reconhecendo apenas a família monoparental. Em que aspectos essa definição fere os direitos garantidos pela Constituição Brasileira? Como assim? Como se deu a conquista do direito de casamento por casais do mesmo sexo no Brasil? Na prática, esses casais estão conseguindo se casar com mais facilidade? Por que o casamento é tão importante para os casais homossexuais e por que se luta tanto por esse direito, uma vez que o direito à união civil já é assegurado? O que muda na vida de um casal homossexual que conseguiu o direito de se casar? Sobre a família, como ela é definida atualmente nos dispositivos legais brasileiros? Quais as chances de aprovação desse projeto? Alguns países como a Argentina estão à frente nas questões de direitos dos grupos LGBT. Como o resto do mundo se posiciona frente aos direitos desses grupos? Como o senhor explica o aumento do discurso de ódio frente aos grupos LGBT, tanto no que se refere ao casamento entre pessoas do mesmo sexo quanto à constituição de novos arranjos familiares? Uma legislação mais avançada que assegure e amplie direitos aos homossexuais pode tornar a sociedade brasileira mais tolerante? (Luana Macieira)
“Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” Essa é a pergunta de uma enquete que está no ar no site da Câmara dos Deputados desde fevereiro do ano passado.
O assunto está em pauta devido a dois motivos. Primeiramente, estamos vendo o crescimento dos movimentos de luta pelo reconhecimento dos direitos das minorias, entre as quais a comunidade LGBT. Ao mesmo tempo, existe uma resistência a esses movimentos, pois, na medida em que se dá mais visibilidade à questão de ampliação de direitos, os grupos que se opõem tendem a se posicionar, inclusive no Congresso Nacional, onde cresce a representação de movimentos conservadores.
Esses grupos são heterogêneos, mas podemos destacar as igrejas neopentecostais, que têm uma visão muito radical e contrária à ampliação de direitos. Essas igrejas têm crescido, e o censo do IBGE comprova isso, pois é cada vez maior a proporção de pessoas que se declaram evangélicas e participantes de movimentos que se colocam politicamente contra pautas progressistas. A Igreja Católica também é contrária a pautas como a do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas há uma diferença. Ela trabalha no sentido de influenciar a opinião pública e, de forma indireta, os políticos e o Estado. No caso das igrejas pentecostais, há uma atuação política direta. Seus representantes se candidatam, são eleitos e agem no Congresso Nacional.
Em seu artigo 226, a Constituição Brasileira estabelece que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O nosso Código Civil, em seu artigo 1514, dispõe que “o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do nosso judiciário, entendeu que esses dispositivos são inconstitucionais, mesmo que um deles conste do próprio texto constitucional.
O STF interpretou que essas disposições são contrárias aos fundamentos do Estado Democrático de Direito e aos seus princípios norteadores, como o da igualdade, o da liberdade, o da não discriminação e todos os outros direitos fundamentais que constam no artigo 5º da Constituição Federal. O próprio preâmbulo da Constituição diz que o objetivo da nossa República Federativa é construir uma sociedade plural, fraterna e sem preconceitos. Ou seja, há uma incompatibilidade entre os princípios basilares do Estado do Direito e essa regulação específica sobre a família.
Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal admitiu a união estável entre pessoas do mesmo sexo com todos os efeitos da união estável heterossexual. O princípio norteador é o respeito às diferenças e a vedação à discriminação em razão de orientação sexual. Como o Código Civil admite a conversão da união estável em casamento, vários casais começaram a requerê-lo. Assim, o Conselho Nacional de Justiça emitiu, em maio de 2013, uma resolução que proibiu os cartórios de recusarem a habilitação, a celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Desde então, qualquer casal pode se casar no Brasil, não importando o sexo ou a orientação sexual.
O Código Civil não foi alterado. Ele continua estabelecendo que casamento é apenas entre homem e mulher. Para mudar o Código, é necessário um processo legislativo, algo improvável nesse Congresso conservador que elegemos nas últimas eleições. Não alimentamos qualquer expectativa nesse sentido. O que aconteceu foi uma reinterpretação sobre o dispositivo da união estável e do casamento à luz dos princípios constitucionais e dos fundamentos da República brasileira. Como se trata de uma decisão do STF, ela vincula todos os outros tribunais do Brasil. Hoje, um casal homossexual vai ao cartório e abre um processo idêntico ao de casais heterossexuais. Eventualmente, um cartório pode se negar a fazer o registro de casamento entre pessoas do mesmo sexo, e um juiz, uma vez provocado, poderia decidir contrariamente à interpretação do STF. No entanto, uma decisão assim poderia ser facilmente derrubada na instância superior. Enfim, o que assegurou a possibilidade de união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma decisão judicial. A lei, infelizmente, não sofreu alterações.
O casamento muda o estado civil de uma pessoa. Dizer que alguns grupos não podem mudar seu estado civil para que ele corresponda a uma situação de fato significa tratar de forma diferente esses grupos. Mudar o estado civil pode ser um grande facilitador no cotidiano das pessoas. Apesar de ter quase os mesmos efeitos do casamento, a união estável é mais difícil de ser comprovada. Ela não muda o estado civil da pessoa, o casamento, sim.
Quando se fala em direitos da família, todo mundo pensa na divisão de bens, em casos de separação. Mas há uma série de circunstâncias na vida afetadas pelo fato de alguém estar casado ou não. Por exemplo, se um cônjuge sofre um acidente e precisa de intervenção médica, quem está legitimado a fazer essa autorização e até para estar presente no hospital e acompanhar esse procedimento é um membro da família. Sem ter o status de família, um casal homossexual encontra mais dificuldades para lidar com esse tipo de situação. Na prática, casais homossexuais acabam recebendo tratamento diferenciado em hospitais, escolas, polícia e outros espaços públicos. E quando há filhos, as coisas ficam ainda mais difíceis. Se não se reconhece o status de família, quem tem o poder sobre o filho é apenas o pai ou a mãe biológica. O outro membro do casal, que também é pai ou mãe, não tem sua autoridade reconhecida perante a escola, o hospital e demais espaços públicos. Isso traz uma série de consequências que os heterossexuais nem se dão conta, porque é algo muito natural na vida deles. Os casais homossexuais enfrentam obstáculos que os heterossexuais desconhecem.
Não existe uma definição precisa na nossa lei, mas houve uma decisão recente do STF, cuja relatora foi a ministra Carmem Lúcia, na qual ela reafirma a importância de se validar qualquer arranjo familiar, reconhecendo as famílias monoparentais e homoparentais. Daí, o risco de se aprovar algo como o Estatuto da Família. Esse projeto é um retrocesso, pois reconhece como entidade familiar apenas o casal formado por homem e mulher ou a relação entre o pai ou uma mãe e seus descendentes. Ele reconhece a família monoparental, mas não a homossexual.
Considerando o perfil do nosso atual Congresso, esse projeto deve passar. Mas ele é claramente inconstitucional, então, quando for aprovado, o judiciário será provocado e, em consonância com suas últimas decisões, deve declarar a sua inconstitucionalidade. Mas há um efeito simbólico na aprovação desse estatuto, uma vez que estamos falando de famílias homossexuais que sofrem discriminação e violência cotidiana. Um projeto como esse tem impacto até na segurança delas, abalando e criando problemas para essas famílias. Imagina o tipo de embaraço que um filho ou filha de um casal homossexual já não sofre em uma escola?
Estamos pouco preparados para viver em uma democracia, mas isso não ocorre só na América Latina. A França, por exemplo, está vivendo um momento de fortes manifestações contra o casamento gay. No ano passado, foi aprovada a lei que o reconhece, mas, antes que isso acontecesse, houve muita mobilização e passeatas nas ruas com mais de um milhão de pessoas contrárias. Essas tensões acontecem em todos os países. É claro que em alguns ambientes há uma maior tolerância, que talvez se explique por um maior nível educacional e uma maior igualdade social. Mas a verdade é que viver em um ambiente plural é muito difícil e conflituoso. Sempre haverá conflitos em um mundo onde haja democracia, porque ela deve aceitar a discordância, o diferente. A Argentina é, de fato, um bom exemplo de país que está mais avançado nesse assunto, uma vez que reconheceu legalmente a união de pessoas do mesmo sexo. Todavia, é sempre delicado contar apenas com soluções legislativas, nas quais normalmente a maioria decide sobre questões que dizem respeito às minorias.
A realidade de discriminação e violência sofrida por esses grupos é normalmente invisibilizada. Muitas vezes, em razão do medo, não se apresentam socialmente como casais ou como famílias. Muita gente não se dá conta da violência que gays, lésbicas, travestis e transexuais sofrem cotidianamente, e acredito que os discursos homofóbicos são reproduzidos porque as pessoas não têm a exata noção de seus efeitos. Dados de 2012 mostram que 44% das mortes de homossexuais no mundo ocorrem no Brasil, e muitos casos nem são notificados por causa da vergonha que o registro da violência por razões homofóbicas impõe às famílias. No Brasil, o discurso de ódio está muito ligado aos discursos religiosos e de proteção da família tradicional, segundo os quais os novos arranjos familiares representam uma ameaça à configuração tradicional. Não há um esforço de informar as pessoas sobre a violência e as dificuldades cotidianas sofridas por esses grupos minoritários, que representam menos de 10% da população.
Na condição de jurista, não posso esperar que uma lei desfaça as tensões sociais ou suprima a homofobia. Elas sempre vão existir porque as pessoas têm percepções diferentes e acreditam em coisas diferentes. Não é papel do direito mudar essas tensões, e, sim, administrar esses conflitos e estar comprometido com os princípios da igualdade, da liberdade, da não discriminação e da solidariedade. Não queremos mudar os valores de ninguém, pois o Estado democrático de direito supõe a pluralidade de pensamentos. Essa é a lógica. O fundamental é garantir que esses grupos sejam protegidos igualmente. Não estamos falando de privilégios ou de oferecer a eles vantagens em relação às famílias tradicionais. Estamos falando de reconhecer juridicamente direitos que as outras famílias já têm. Essas decisões não mudam as opiniões das pessoas, mas exigem respeito e reconhecimento legal por parte da sociedade e do Estado.