Escravo vendedor de caldo de cana, na obra de Joaquim Lopes de Barros (1840) Essas e outras premissas foram detalhadas na dissertação De cabeça de porco à bebida de negro: um estudo sobre a produção e o consumo da aguardente nas Minas Gerais no século XVIII, defendida por Valquíria Ferreira da Silva no Programa de Pós-graduação em História, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG. "O trabalho partiu da ideia de que a experiência concreta da sociedade colonial mineira só poderia ser apreendida se fosse considerada em suas múltiplas dimensões. Para isso, procurei perceber como os interesses e as ações dos agentes sociais se combinavam, colidiam e se interpenetravam quanto à produção, circulação e ao consumo das aguardentes nas Minas setecentistas", explica a autora. "Considerando aspectos da política e da administração setecentista do Império, procurei esmiuçar, na região mineradora, a história oculta da cachaça." Estancos e meias patacas No segundo capítulo, a pesquisadora relata onde os produtores se encontravam, como e para quem produziam. Inventários post mortem, testamentos, declarações da produção e manuais de feitura foram as bases documentais. "Apurei peculiaridades como a pulverização da fabricação, representada pela imensa quantidade de pequenos e médios produtores. Havia poucos grandes produtores", comenta Valquíria. Também veio à tona a coexistência de qualidades diferentes de aguardentes produzidas na capitania: aguardente de cabeça, aguardente da fraca, aguardente proveniente da garapa e aguardente do melado. Por elas, eram cobrados valores diferenciados, estimulando um mercado consumidor diverso. Ambulantes e lojas "Os focos dessa parte do trabalho foram os artifícios utilizados pelos vendedores ambulantes, especialmente os que transitavam ilegalmente pelos morros das urbes mineradoras negociando bebidas e comidas, além das lojas estabelecidas nos centros dessas localidades, onde a bebida era comercializada legalmente", conta Valquíria. A autora esclarece que os documentos examinados apresentaram situações paradoxais em relação aos diferentes tipos de bebida produzidas na capitania. "O termo 'cachaça' foi recorrente nos autos de achada e nas listas de almotaçarias [tabelamento de preços de produtos diversos], mas quase ausente nas cartas de doação de sesmarias, nos requerimentos para levantar engenhos e nas declarações das vendas ao governo, onde predominou o termo 'aguardente'. No entanto, mesmo sendo associada de forma depreciativa aos negros e cativos, comprovou-se que a 'cachaça' também esteve presente nos copos de outras camadas da sociedade mineira setecentista, sendo mesmo utilizada em curas de doenças", explica a autora. Ainda sobre essa aparente contradição, Valquíria constatou que, se nas Minas setecentistas predominou o caráter pejorativo atribuído à cachaça, bem diferente foi o destaque conferido à bebida pelo príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Em viagem ao Brasil no ano de 1815, ele, de certa forma, profetizou o status que a bebida alcançaria nos dias atuais: "Entre tantos tipos de aguardente, a melhor de todas, vinda da Bahia, [era a] cachaça". Dissertação: De cabeça de porco à bebida de negro: um estudo sobre a produção e o consumo da aguardente nas Minas Gerais no século XVIII (Matheus Espíndola/Boletim 1935)
A cachaça, bebida derivada da cana-de-açúcar, influenciou significativamente o processo histórico da capitania mineira. A ela, podem ser associados conflitos, desordens e descaminhos ao longo século 18. Além disso, a bebida foi componente essencial de controle social e tributário. Havia também quem a considerasse fundamental à dieta nutricional e à cura de muitas enfermidades.
Valquíria abre o trabalho com uma reflexão sobre as ações da Coroa portuguesa. "Com base nas leis, analisei o cotidiano repleto de conflitos e desregramentos", revela a pesquisadora, observando que as prerrogativas administrativas se moldavam conforme as necessidades da metrópole. "Com uma das mãos, a Coroa autorizou a construção de engenhos e a suspensão de estancos e meias patacas, impostos relativos à entrada e circulação do produto na colônia. Com a outra, instituiu vários outros impostos", exemplifica.
Valquíria Ferreira explorou ainda o cenário da lida com a cachaça por autoridades, comerciantes e consumidores. A leitura de 19 autos de achadas (inquéritos decorrentes da fiscalização dos morros) mostrou que personagens como o preto vendedor de caldo de cana, que levava um barril sobre a cabeça e segurava os copos de medida, também estiveram presentes na região mineradora – embora essa figura fosse mais ligada ao cotidiano de venda do produto no Rio de Janeiro.
Autora: Valquíria Ferreira da Silva
Orientadora: Júnia Ferreira Furtado
Defesa: setembro de 2015, no Programa de Pós-graduação em História