Paul Valéry conta a história da serpente que come a própria cauda. Depois de um longo tempo mastigando, ela reconhece no que come o próprio gosto; e aí para de se engolir. Daí a instantes, contudo, não tendo mais do que se alimentar, volta a se devorar, em um círculo autodigestivo. Numa instância impossível, o animal chegaria mesmo ao absurdo de ter em sua goela a sua própria cabeça. "É o que se chama uma teoria do conhecimento", provoca o filósofo e escritor francês. A alegoria ilustra o processo de concepção do volume O livro de artista e a enciclopédia visual, do professor Amir Brito Cadôr, que a Editora UFMG lançou recentemente pela coleção Artes Visuais: se o dispositivo "livro" é o representante máximo e mais antigo do desejo humano de inventariar o conhecimento, a obra de Amir se propõe ser um inventário de outros livros, fazendo resultar desse circular movimento uma teoria do conhecimento por meio de imagens. Dito de outro modo, a obra apresenta uma teoria no momento de sua concepção – e isso em linguagem simples, que evita os jargões acadêmicos, fazendo-se acessível não só a pesquisadores, mas também a graduandos e mesmo secundaristas. O trabalho é uma enciclopédia de livros de artista que, ao mesmo tempo que desvela em seu produto final o processo por meio do qual foi estabelecida, funciona como manual de produção de enciclopédias visuais. "Não por acaso, o círculo é a metáfora por excelência da enciclopédia, que não tem começo nem fim", escreve Amir. Segundo o professor da EBA, a autorreferencialidade da obra se dá por meio de um movimento em espiral, em que cada volta aumenta o campo de abrangência do contorno circular que o conhecimento tenta empreender sobre si mesmo. Constelações Cada verbete é "ilustrado" com um ou mais livros de artista que, em si, engendram um saber sobre aquele tema específico – sem que se tente, nesse processo, abranger um universo pretensamente totalizante. No verbete "papel", por exemplo, é apresentado o livro Circles, em que o artista islandês Kristján Gudmundsson reproduz três fotografias de círculos que se formam na superfície da água quando se deixa cair nela uma pedra. Na obra, os três círculos têm tamanhos distintos, já que foram criados por pedras de diferentes pesos. A espessura do papel de cada página varia de acordo com o tamanho dos círculos, sugerindo uma relação entre essa gramatura e o peso da pedra que gerou cada uma das imagens. Para sua enciclopédia, o pesquisador selecionou apenas livros de artista com tiragem comercial e que geram conhecimento com base em imagens ou na relação entre texto e imagem. A maioria pertence à coleção especial de livros de artista da biblioteca da Escola de Belas-Artes da UFMG, pioneira no Brasil, estruturada em 2009. Amir é o curador da coleção. Outros fazem parte do acervo pessoal do autor ou pertencem a pesquisadores parceiros, que colaboraram com a escrita da tese – defendida em 2012 na UFMG – que resultou na publicação. A coleção especial que subsidiou o trabalho – que pode ser conhecida neste site – conta com mais de 500 livros catalogados, além de cerca de 300 por catalogar. O livro de Amir Cadôr é o segundo da coleção Artes Visuais. No primeiro semestre, foi publicado o volume Arte poder, do crítico e filósofo alemão Boris Groys. (Ewerton Martins Ribeiro / Boletim 1957)
O livro se organiza em mais de 70 verbetes independentes e não sequenciais, estruturados em rede. Cada ponto pode se ligar a qualquer outro, formando constelações. Distribuídos em 12 capítulos temáticos, esses verbetes sintetizam alguns dos principais conceitos pertinentes ao universo dos livros, como coleção, biblioteca, museu, dicionário, lista, inventário, atlas, arquivo, catálogo, corpo, montagem, edição, tipografia, paratexto, leitura, legenda, contexto, apropriação, tradução, imaginação, plágio, representação, cópia, labirinto, espelho.