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Nº 1566 - Ano 33
26.2.2007

É uma tragédia, meritíssimo!

Martelo de juiz

Tese da Faculdade de Letras analisa a construção dos discursos nos tribunais de júri

Maurício Guilherme Silva Jr.

N

a década de 1980, uma empresária belo-horizontina é assassinada
em casa enquanto dormia. O autor do crime, seu próprio marido, dispara seis tiros na mulher, movido, segundo relato pessoal, por ciúmes. A história chocou a opinião pública e, do Boletim de Ocorrência (BO) aos tribunais, transformou-se em matéria-prima para um grande “circo” de discursos. As peças processuais da tragédia passional revelam intenções, emoções, estereótipos e moralismos presentes nos julgamentos.

Diante das mais de 500 páginas de relatos sobre o crime escritas por peritos, delegados, promotores, defensores e psicólogos, Helcira Maria Rodrigues de Lima buscou compreender o processo de construção dos discursos em todo o processo – do primeiro BO ao termo de soltura do réu. A “investigação” da pesquisadora culminou com tese de doutorado defendida junto à Faculdade de Letras.

“Procurei analisar a construção dos discursos argumentativos da defesa e da acusação”, explica Helcira, que já havia estudado tema similar em sua dissertação de mestrado, quando percorreu tribunais, freqüentou audiências e constatou terreno fértil para estudo acadêmico. “Naquela época, estudei o julgamento pelo assassinato de uma garota. Como ela ainda era virgem, percebi, nos discursos de advogados e juízes, certa esteriotipagem da figura feminina”, relembra.

Da análise do assassinato da jovem, Helcira debruçou-se, no doutorado, sobre um processo ainda mais complexo, que reuniu discursos múltiplos em três julgamentos (1986,1988 e 1991). Neste caso, o réu fora condenado a cinco anos de prisão, pena leve se considerada a brutalidade do crime. Ela foi resultado, em grande parte, da atuação do advogado de defesa, autoridade na área de direto criminal, que conseguira fazer com que o júri popular se “rendesse” à idéia de “legítima defesa da honra”.

Na tese de Helcira Rodrigues, está, em primeiro lugar, a análise do funcionamento de um tribunal. A partir, principalmente, das teorias de Foucault, Helcira investiga noções de poder, conhecimento e verdade. “Traço um perfil histórico do conceito de justiça”, sintetiza.

Argumentação e retórica

Na segunda parte de seu trabalho, Helcira estudou os mecanismos de argumentação e retórica usados por todos os profissionais envolvidos. A partir, principalmente, dos teóricos Christian Plantin e Ruth Amossy, a pesquisadora elaborou três eixos de análise do discurso. A discussão em torno do crime foi estudada segundo as dimensões do pathos, termo representativo da paixão; da construção das imagens de si e dos outros; e demonstrativa.

“A argumentação apóia-se na interpenetração das três dimensões”, explica Helcira, ao citar Gilles Deleuze, para quem os platôs, presentes na argumentação do autor, são formados por anéis que se cruzam sem perder seu caráter individual. “No processo de julgamento, as construções discursivas, com finalidades diversas, se relacionam. Mas a dimensão do pathos é a mais valorizada”, diz. Na terceira parte de sua investigação, a pesquisadora dedica-se, exclusivamente, à análise dos textos elaborados para chegar ao veredicto.

O simples emprego de uma palavra pode configurar mudanças no entendimento. Que o diga o termo “estirado”, presente no BO inicial, que descrevia a forma com que o corpo da vítima foi encontrado no chão. Há um peso intrínseco sobre a palavra, que poderia ser substituída, por exemplo, por “deitado”. Os textos técnicos, portanto, possuem grande carga argumentativa, já que se destinam à tomada de posição de um terceiro (o júri popular, por exemplo), que, segundo a pesquisadora, “está fora do processo”. No complexo “circo” dos tribunais, tudo pode ser evidência: um adjetivo, um substantivo, uma mudança de tom na voz.

  Tese: Na tessitura do processo penal: a argumentação no tribunal do júri
Autora: Helcira Maria Rodrigues de Lima
Orientadora:
Maria Sueli de Oliveira Pires
Defesa:
22 de dezembro de 2006 junto ao Programa de Pós-Graduação em estudos lingüísticos da Faculdade de Letras (Fale)