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Nº 1619 - Ano 34
04.08.2008

opiniao

Machado de Assis, crítico da educação brasileira

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Há 100 anos, perdemos um dos maiores expoentes da literatura universal: Machado de Assis. A intenção deste artigo é prestar-lhe uma homenagem, ao destacar e comentar a narrativa Conto de escola, publicado na Gazeta de Notícias, em 1884, e 12 anos depois incluído no volume Várias histórias, sob a perspectiva de investigar a expansão do ensino de primeiras letras e a escolarização da infância pobre no Brasil, associada à ideologia da elite imperial de construção e consolidação do Estado Nacional.

A narrativa desenrola-se no próprio ambiente escolar, “um sobradinho de grade de pau” situado à Rua do Costa, na capital do Império. É significativo o fato de o contista ter identificado o narrador como um estudante das séries primárias. Dentro dos discursos educacionais oitocentistas, não se pode deixar de salientar o tipo de infância que é explorada no conto, relacionada ao estamento social menos favorecido. Por exemplo, Pilar, narrador-personagem do conto, se identifica como filho de um velho empregado do Arsenal de Guerra. Raimundo era filho do professor Policarpo, e pela descrição do narrador, o mestre-escola não parecia ter muitas posses. Outra pista para a identificação da origem social do narrador é a fascinação deste pela moeda que Raimundo lhe oferece.

Raimundo propôs “um negócio, uma troca de serviços” a Pilar. Baseado na política do “toma lá, dá cá”, o filho do professor daria a moeda em troca da explicação de um ponto da lição de sintaxe, dada pelo narrador-personagem. Merece ser destacado que o autor da proposta de suborno tem como pai o mestre Policarpo e a mãe ligada à elite imperial. Já, Pilar, de origem humilde, “era dos mais adiantados da escola” e “dos mais inteligentes”. Ao se colocar na posição de aluno pertencente à infância pobre e se constituir capacitado intelectualmente, o narrador do conto desloca o discurso social elitista numa inversão de papéis: não era a sua classe inferior em conhecimentos, mas a originária da elite imperial, representada pelo colega Raimundo.

Além de conferir voz a uma infância hegemonicamente silenciada, a narrativa evidencia a (in)eficácia da escola como instituição socializadora da infância pobre

O narrador insiste em sua habilidade intelectual, associando-a à sua estrutura física: “note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro”, isto, logo após caracterizar o colega Raimundo como pálido, mole e de inteligência tardia, contradizendo, assim o discurso imperial. Este, conforme assinala José Pires de Almeida, em Instrução pública no Brasil (1580-1889), alertava que, diferentemente da classe inteligente “voltada para o bem”, os filhos provenientes da classe miúda apresentavam forte tendência de serem “fracos, pálidos e mal nutridos” e, por serem “miscigenados”, eram ainda possuidores de “um fundo hereditário de depravação que transparecerá nas ocasiões de faltas e maus exemplos”.

A situação discursiva histórica analisada traz dois efeitos a ela apensos: a comunidade escolar infantil oitocentista se dividia em uma infância superior em faculdades físicas e mentais, representada pelos filhos da elite imperial, e uma infância inferior, desprovida de valores físicos, intelectuais e morais, incluindo aí a classe “miscigenada” dos filhos da massa imperial.
As transferências que ocorrem na narrativa, na troca de papéis entre Raimundo e Pilar, trazem evidências do discurso irônico machadiano em criticar a sociedade hipócrita de seu tempo.

A partir do episódio do suborno, que envolve Raimundo e Pilar, questiona-se a onipotência do discurso estatal: os vícios morais do meio escolar oitocentista restringiam-se à infância pobre ou eram manifestações dos filhos da elite imperial?
A escola estava lá, articulada no discurso moralizador do ideário imperial, para socializar a infância dita inferior.

O mestre-escola, na verdade, utiliza da palmatória como instrumento de força para castigar e desenvolver os bons costumes e a civilidade, quando descobre por meio da delação de um de seus alunos, Curvelo, o ato imoral cometido por Raimundo e Pilar. A ação de Policarpo em sua explosão de raiva é emblemática: no período imperial, a escola significou local de correção, onde se articulavam o discurso da ordem e da moral, e o professor deveria aplicar o castigo necessário, previsto em lei, para assegurá-lo.

O sujeito desencadeador do castigo não foi Pilar, o menino pobre vadio, mas Raimundo, que além de ser filho do professor, tinha suas origens maternas na elite imperial. Essa migração dos sujeitos históricos afeta nossa visão do conto e mais uma vez nos faz reconhecer um sentido já familiar aos leitores de Machado: a exposição irônica da conduta volúvel do estamento senhorial.

Conto de escola funciona, assim, como prática de afrontamento e resistência ao modelo elitista arraigado nas bases da educação brasileira. Além de conferir voz a uma infância hegemonicamente silenciada, a narrativa evidencia a (in)eficácia da escola como instituição socializadora da infância pobre. Pilar, o narrador, era como “outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano”. Seu espírito de liberdade vagava alto pelas praias, ruas e morros da capital imperial. Não foi nesses lugares, entretanto, que Pilar recebeu suas primeiras lições de transgressão social – a corrupção, a delação e o autoritarismo –, mas na Escola de Primeiras Letras no sobradinho da Rua do Costa.

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

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