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Nº 1689 - Ano 36
5.4.2010

opiniao

O surdo e a educação superior: um breve manifesto

Luciana Fiúza de Sousa* e Maria de Lourdes Vieira**

Na década de 80, a recomendação mais comum dada aos pais de crianças diagnosticadas como surdas era que fossem encaminhadas à fonoaudiologia com a indicação expressa de oralização. Essa determinação se dava principalmente no caso de crianças que adquiriam a surdez pós-oralização (depois de terem sido expostas à língua portuguesa por certo período de suas vidas). Médicos costumavam alertar os pais com frases do tipo: “eles se esquecerão de sua língua materna, caso expostos à língua de sinais”. Tal premissa não tem qualquer sustentação científica, visto que a aquisição de uma língua não pressupõe a eliminação da outra, principalmente quando se trata da língua materna, argumentam as professoras Regina Maria de Souza (Unicamp) e Nuria Silvestre (Universidade Autônoma de Barcelona), no livro Educação de surdos, publicado em 2007.

Após longo período, portanto, pesquisadores apontam para a necessidade do uso da língua de sinais, uma vez que acreditam que impedir o surdo de aprender uma língua natural seria impedi-lo de se expressar de maneira completa. Negar a língua de sinais ao surdo é negar-lhe o direito de ser surdo. E esta negação aconteceu durante muito tempo, sob a égide da “normalidade” imposta pelos ouvintes “exterminadores”. Segundo Gladis Perlin e Ronice Muller de Quadros, da Universidade Federal de Santa Catarina, em artigo de 2003, ouvintes “exterminadores” são os que tentam acabar com a língua de sinais e com todos os tipos de manifestações culturais advindas dos grupos surdos. Ao longo da história, sempre tivemos tais experiências (os movimentos pelo oralismo, os programas de educação com base na língua falada, os avanços da medicina, tais como os implantes cocleares).

A Língua Brasileira de Sinais (Libras), reconhecida como a língua oficial dos O surdo e a educação superior: um breve manifesto Luciana Fiúza de Sousa* e Maria de Lourdes Vieira** surdos no Brasil desde a Lei 10.436 de 24/04/2002, evidencia ainda mais a necessidade de o surdo se reafirmar pelo uso de sua língua natural. A transição do ideal de oralização do surdo para o bilinguismo, ou seja, o reconhecimento da Libras como sua língua natural e do português como sua segunda língua, ocorreria efetivamente não fossem alguns impasses impostos pela própria cultura educacional brasileira. Um deles é bastante evidente: a incapacidade de muitas escolas desenvolverem apropriadamente o letramento de alunos surdos. Isso se dá por diversos motivos: falta de adaptação da escola, de professores especializados e de material didático apropriado para o ensino de português como segunda língua, e carência de profissionais capacitados e de intérpretes de Libras em salas de aula. Tais problemas dificultam o ingresso do aluno surdo em uma universidade.

Esse quadro não é consequência de uma incompetência inerente à condição do surdo, mas da incapacidade do Estado em promover educação adequada, principalmente quanto à aquisição da língua portuguesa, utilizada como meio oficial de comunicação escrita para efeito legal de ingresso nos mais diversos tipos de seleção acadêmica e profissional. Isso é percebido de maneira ainda mais acentuada nos vestibulares, ao se observar a grande dificuldade enfrentada pelos alunos surdos em redigir questões abertas em português e na própria prova de língua portuguesa, por não conseguirem compreender, em maior ou menor grau, diferentes aspectos (de âmbito morfológico, sintático-semântico e pragmático) presentes nas questões objetivas e discursivas.

No intuito de propiciar a inclusão de candidatos surdos nas universidades, o MEC, em seu Aviso Circular 277/MEC/GM de 8 de maio de 1996, já recomendava adaptações nas provas de vestibulares das instituições de ensino superior, tais como: “flexibilidade nos critérios de correção da redação e das provas discursivas dos candidatos portadores de deficiência auditiva, dando relevância ao aspecto semântico da mensagem sobre o aspecto formal e/ou adoção de outros mecanismos de avaliação da sua linguagem em substituição à prova de redação”.

Infelizmente, as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) não avançaram nas adaptações de seus vestibulares às necessidades do candidato surdo. Com exceção de algumas universidades federais que aceitaram o desafio da inclusão e o fizeram de forma gradativa, e de outras que foram obrigadas a adotar processos de vestibulares diferenciados por força judicial, poucas apresentam hoje um modelo adequado para aplicação e correção de provas discursivas e de língua portuguesa nesses casos específicos.

No entanto, projetos e iniciativas vêm ocorrendo no âmbito das universidades, dada a necessidade latente de incluir e considerar o aluno surdo, sua língua, identidade e cultura. É imperativo que se mude tal posição de bilateralidade em que sempre se encontraram surdos e ouvintes no contexto de instituições de ensino. Precisamos criar um espaço novo de trocas e relações enriquecedoras e igualitárias. Mais que uma questão humanitária e de direitos, promover a inclusão do surdo no ensino superior é cumprir com as exig ências atuais de uma educação que acolhe o indivíduo em todas as suas especificidades e diferenças.

* Doutoranda em Estudos Linguísticos da UFMG **Aluna do 9º período de Biblioteconomia. Ambas integram o Movimento de Apoio à Inclusão do Surdo na Universidade (Mais)

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