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Nº 1714 - Ano 37
11.10.2010

Arte de restaurar a GUERRA e a PAZ

Painéis de Portinari instalados na ONU retornarão ao Brasil para serem revitalizados com colaboração da UFMG

Ana Maria Vieira

Em dezembro, grupo de professores da UFMG se desloca ao Rio de Janeiro para a primeira avaliação de um conjunto de 28 grandes placas de madeira, provenientes dos Estados Unidos. A carga é incomum: trata-se das peças de dois monumentais painéis do pintor brasileiro Cândido Portinari, de 140 metros quadrados cada, instalados no saguão do prédio da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, desde 1957. A obra modernista com traços cubistas, conhecida como Guerra e Paz, retorna ao país para restauração, onde permanece nos próximos três anos, devido à reforma do edifício da ONU.

A operação, considerada complexa por especialistas da área, conta com recursos de R$ 6,5 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para as etapas de desmontagem dos painéis, além de transporte, armazenamento, restauração e pagamento de seguro por três anos. A previsão é de que os trabalhos de restauração sejam concluídos em quatro meses, e que Guerra e Paz parta para diversas mostras pelo país, incluindo BH, e exterior. Antes, no entanto, ela será exposta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em evento aberto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 13 de dezembro. Pintados em compensado naval, os dois painéis, que tratam separadamente dos temas guerra e paz, apresentam pequenas degradações em decorrência de umidade e da junção das placas.

“Alguns relatos dão conta de que as placas estão com algumas ondulações, craquelês e problemas de limpeza”, diz a professora da Escola de Belas-Artes (EBA) Alessandra Rosado, que integra a equipe da UFMG responsável pela avaliação científica das condições dos painéis. O trabalho de restauração será feito diante do público, no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, por especialistas comandados por Edson Motta, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Cláudio Valério Teixeira, secretário de Cultura de Niterói. A UFMG não participa dessa etapa.

“Nosso papel será fornecer uma tradução, por meio de produção de imagens em alta resolução e de análise científica, da composição material e estrutural da obra. Essa avaliação ajudará a determinar o tipo de intervenção e os materiais a serem utilizados pela equipe de Edson Motta”, detalha o professor Luiz Souza, diretor da EBA, que coordena o grupo da UFMG na parceria de restauração.

A Universidade, por meio do Laboratório de Ciência da Conservação (Lacicor), vinculado Cecor, ambos da EBA, é líder nessa modalidade de trabalho e pesquisa no país – o que a tornou referência em conservação e análise científica de acervos culturais, útil inclusive na arbitragem de falsificação e autenticidade de obras de arte, especialmente de autores brasileiros.

Fonte: portal do Projeto Portinari: www.portinari.org.br

 

Aliado

Como explica Souza, o Lacicor poderá dar um salto em seu know-how com a análise de Guerra e Paz – que envolve, na realidade, projeto mais amplo de conhecimento da obra de Cândido Portinari e que tem aliado de peso na Itália: o Centro SMAArt (sigla para Metodologias Científicas Aplicadas a Arte e Arqueologia), vinculado à Universidade de Peruggia.

O órgão, que detém as técnicas mais avançadas de análise científica de bens culturais não destrutivas, deverá transferir tecnologia e firmar convênio de intercâmbio acadêmico com a UFMG. “O que os diferencia é o uso de laboratório móvel e muitos equipamentos portáteis de ponta, que dispensam a retirada de amostra física das obras, inclusive para análise de materiais”, ressalta Souza.

Em janeiro, alguns de seus integrantes desembarcam no país para trabalhar em mutirão com a equipe da UFMG nos painéis Guerra e Paz e em outro projeto de pesquisa do Lacicor, financiado pelo CNPq: a análise de técnicas e materiais das coleções Portinari do Museu Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro, e do Museu Chácara do Céu, que se encontra hoje na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Entre as obras mais conhecidas dos acervos estão Baile na Roça e Café.

De acordo com Souza, a colaboração dos europeus nos trabalhos dos painéis Guerra e Paz fará parte das atividades do ano da Itália no Brasil, em 2011, com apoio do Instituto Italiano de Cultura.

Falsificações

Cândido Portinari é um dos autores mais falsificados no país. Ainda em vida, alcançou grande popularidade e reconhecimento da crítica brasileira e do exterior graças à autenticidade de seus temas e mistura de estilos – clássico, expressionista, cubista e surrealista – e técnicas – pintura mural, afresco e óleo sobre tela.

Considerado exímio desenhista, ele transportou para as telas os traços físicos, sofrimentos e alegrias do povo brasileiro. Os painéis produzidos para a ONU, que trazem cenas e expressões das tragédias e esperanças humanas, personificadas em tipos nacionais, são tidos como a mensagem do Brasil ao mundo, sobre as dimensões da guerra e da paz.

Como observa Luiz Souza, o conhecimento científico de sua pintura é considerado fundamental para combater o tráfico das obras. Parte desse trabalho foi iniciado há 30 anos pelo Projeto Portinari, encabeçado pelo filho do pintor, João Cândido Portinari, e que produziu o primeiro catálogo Raisonné de um artista plástico brasileiro, em que constam dados do autor e análises históricas, de estilo e trajetória comercial das obras.

O conjunto de informações reunidas pelo Projeto inclui acervo de mais de cinco mil cromos das pinturas do autor espalhadas pelo mundo. “Após três décadas, eles começaram a perder as cores”, informa Souza. A recuperação do material é o foco de pesquisa de doutorado na UFMG. “Está sendo proposta metodologia para escanear os cromos e restaurar digitalmente suas cores”, relata o professor. A tese é de autoria do professor da EBA Alexandre Leão, coordenador do Laboratório de Documentação Científica por Imagem, vinculado ao Lacicor. Especificamente para Guerra e Paz, outro desafio já se coloca para o Laboratório: oferecer solução tecnológica para armazenamento digital de suas imagens, para plotagem em tamanho natural. “A cópia ficará no país”, esclarece Luiz Souza.

Técnicas do invisível

Woman, 1955 july. Drawing - lead pencil, color crayon, sanguine and crayon/Bristol board, 34 x 16,5 cm

Equipamentos portáteis do Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG serão levados ao Rio de Janeiro para que, aliados a outros trazidos pelos italianos do SMAArt, façam a documentação de Guerra e Paz. “Vamos usar luz visível, que é a fotografia obtida por scanner digital; infravermelho, ultravioleta e raio X para gerar imagens em alta resolução”, antecipa Souza. Após a captação, as “fotografias” serão transferidas a um computador, para a ampliação de detalhes. As técnicas funcionam como ferramentas de diagnóstico por imagem.

Por meio delas, é possível acessar o que está invisível a olho nu, como os arrependimentos do artista, em que desenhos são suplantados por outras escolhas. “A fotografia em infravermelho passa pela camada de pintura e consegue fornecer o desenho preparatório do pintor, antes de pintar a tela”, explica Alessandra Rosado. Já a luz visível permite verificar o estado do verniz e o que os técnicos chamam de “tipologia de craquelê”, as rachaduras e riscos presentes na superfície da tela.

Análises de pigmentos, ou cores, usados pelos artistas também não escapam dos “olhos eletrônicos” do Lacicor. “Ao tratar a fotografia no computador, tirando os canais verde e vermelho e substituindo o canal azul pelo de infravermelho, é possível gerar outra imagem chamada infravermelho de falsa cor. É ela que dá informações sobre os pigmentos”, explica o diretor da EBA.

Efeito impressionante para os leigos é produzido pela radiografia X (raio X). A técnica expõe a estrutura da pintura. “Dá para ver a forma das pinceladas, se houve algum rasgo ou remendo na tela não visível a olho nu, mas, sobretudo, a densidade da obra em função dos elementos químicos pesados que foram utilizados”, descreve Luiz Souza.