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Nº 1748 - Ano 37
12.9.2011

opiniao

Ode à ALEGRIA*

Cecília Cavalieri França**

Dos pátios da escola aos da imaginação, do Rock in Rio à 5ª de Mahler, do canto no chuveiro ao Concert Hall, ela é onipresente nas nossas vidas. Música é prática social universal, unânime, tão antiga quanto o próprio homem, que canta, dança, assovia, bate palmas, marcha, celebra, diverte-se, acalma-se, anima-se, ri e chora ao longo de toda a sua vida.
Companheiras de todas as horas, essas atividades escondem (melhor dizendo, revelam!) um mundo de operações mentais e envolvem diversas habilidades físicas, cognitivas e expressivas. Despretensiosamente, exercitam o sensorial, o intuitivo, o afetivo e o inefável. Não se trata de atividades periféricas, eventuais ou decorativas, mas essenciais à vida humana.

A predisposição à música é inata e floresce espontaneamente em graciosas habilidades musicais nos primeiros anos de vida. Mas cabe ao ambiente oferecer estímulos adequados para que o desenvolvimento musical se consolide: uma prática sistemática e diversificada, que contemple a criação musical, a escuta variada, a experiência de cantar e de tocar um instrumento (ainda que feito de sucata), de fazer parte de um grupo musical, de opinar, escolher, de crescer dentro de um universo sonoro ilimitado que dialogue com outras áreas do conhecimento.

Disciplinas escolares são sistematizações de práticas humanas, diferentes maneiras de nos relacionarmos com o mundo, de compreendê-lo e de nele intervir. O propósito da educação formal é avançar além do senso comum por meio das várias janelas pelas quais o conhecimento se manifesta. Música é uma dessas janelas, uma área de conhecimento muito mais profunda do que julgam os próprios praticantes. Pesquisadores acreditam que a música seja uma fonte primordial de prazer para o nosso cérebro (Levitin, 2006). A ela são creditadas nossas primeiras memórias, registradas já na vida intrauterina, e também nossas últimas lembranças, aquelas que permanecem quando todas as outras já se dissiparam.
Hoje, computadores monitoram ao vivo e a cores o cérebro de músicos em funcionamento, revelando as regiões devotadas ao processamento musical. Sabe-se que essa prática afeta tanto a morfologia quanto a fisiologia cerebral, tornando o cérebro do músico diferente daquele do não músico (Pascual-Leone, 2003). A experiência musical cultiva capacidades além das lógico-matemáticas, do pensamento convergente, da resposta única e exata (Lehman, 1988).

“O propósito da educação formal é avançar além do senso comum por meio das várias janelas pelas quais o conhecimento se manifesta. Música é uma dessas janelas, uma área de conhecimento muito mais profunda do que julgam os próprios praticantes”

O fazer musical promove a tomada de decisão criativa e expressiva e o desenvolvimento da sensibilidade a ideias não verbais. Dada sua natureza simbólica, permite a expressão do pensamento de uma maneira não conceitual. Do ponto de vista psicológico, integra e equilibra tendências imaginativas e imitativas, intuitivas e analíticas. Pela sua característica temporal e estrutural, opera na consolidação das habilidades cognitivas de descentração e reversibilidade, subsidiando o desenvolvimento do pensamento abstrato.

Correntes da filosofia e da sociologia também endossam a prática musical na formação do indivíduo. Música é uma forma simbólica peculiar (Swanwick, 1994), com sua maneira específica de articulação, reflexão e exposição de ideias e significados. Ela é um campo do conhecimento no qual a expressão é múltipla, o que permite exercitar a criatividade, tomar decisões e exercer a autonomia, favorecendo a comunicação e a socialização. Por meio da música inauguram-se modos de dar forma à percepção subjetiva do mundo e de construir outros mundos possíveis, imaginários.

A música se revela, ainda, como forte elemento de formação, manifestação e ressignificação da identidade do indivíduo (Macdonald; Hargreaves; Miell, 2002). A partir do repertório que se ouve – ou se pratica – podem-se desfiar biografias e autobiografias, visitar memórias e resgatar, para muitos, impressões do próprio “eu”. Gostar de tal banda, cantor ou estilo fazem-nos parte de uma tribo, na qual só entram afins. Muitas vezes, tais escolhas não ocorrem por opção, mas por falta de opção: cunha-se um “gostar” moldado pela indústria cultural, que cria e repete fórmulas banais, hits que grudam na memória, a qual, por sua vez, passa a rejeitar modelos que demandem uma escuta consciente e autônoma. Quando o leque de opções de escuta se abre, amplia-se o horizonte estilístico e as escolhas passam a ser qualificadas, balizadas pelo questionamento e pela reflexão crítica, que permitem identificar e rejeitar o clichê-comercial-descartável.

Mas para que a música seja consolidada na educação básica, ainda há muito a ser feito. Há que se formar uma legião de educadores musicais. E para tanto, precisamos de formadores que cultivem a ética, a transparência, a lealdade e a humanidade, quesitos que não valem pontos no Lattes, mas contam pontos na vida. Precisamos de educadores autênticos, que não façam da harmonia disciplina curricular, mas busca do espírito; que pratiquem a percepção não como habilidade do ouvido, mas como desvelo da alma; que não usem a música como um trampolim egoico, mas como um rappel para dentro de si; que não façam do trabalho contagem de tempo, mas sacerdócio da vida inteira.

*Título do poema de Schiller, cantado no quarto movimento da 9ª Sinfonia de Beethoven
**Doutora em Educação Musical

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