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Nº 1866 - Ano 40
02.06.2014

opiniao

A internacionalização da dignidade em vida

Wellington Marçal de Carvalho*

"A cor do carvão é um mistério;
a gente pensa que ele é preto, ou branco.”

Guimarães Rosa

Em tempos marcados pela porosidade das fronteiras dos estados nacionais provocados por segmentos da sociedade dedicados à educação, parece razoável refletir sobre nuances dos pactos de cooperação, a fim de que tais acordos não se performem como novos equipamentos de solapagem da dignidade dos povos.

De início, seria interessante relembrar parte da conferência proferida pelo reitor da UFMG, gestão 2010-2014, Clélio Campolina Diniz, por ocasião do XXIII Encontro das Associações das Universidades de Língua Portuguesa (Aulp), em junho de 2013, com o tema Cooperação e desenvolvimento nos países de língua portuguesa: o papel das universidades. Daquela fala instigante destacaria, por hora, a caracterização das longas ondas no capitalismo, denominadas de Ciclos de Kondratieff.

Sumariamente esses ciclos podem ser assim descritos: o primeiro é identificado pela generalização de inovações da indústria têxtil, pelo uso do ferro e do vapor; o segundo introduz e massifica a estrada de ferro; o terceiro pauta a ascensão do aço, da eletricidade e da indústria química; o quarto ocorre durante a Segunda Guerra Mundial e corresponde à era do petróleo; o quinto emblematiza a difusão das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

O pesquisador defende a existência de uma sexta onda longa, resultante da combinação de múltiplas trajetórias tecnológicas, dentre elas o aperfeiçoamento das TICs. Sublinha, ainda, a necessidade de se adotar medidas para arrefecer o gnosticismo tecnológico, ou seja, o avanço das tecnologias como um fim em si mesmo.

Esses ajustamentos do mundo, para utilizar uma expressão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, plenos de boa intenção, erigem-se calcados na perspectiva de acolher novos elementos no interior do carro do progresso social. Uma das faces desse fenômeno é delineada na ambiência das instituições de ensino superior, sobretudo quando se verifica o encampamento de estratagemas para que entidades alcancem o patamar, exíguo, das denominadas “universidades de classe mundial”. Trata-se de um tipo específico e raro de instituição. De acordo com o Plano de Desenvolvimento Institucional da UFMG: 2013-2017, de 13 de abril de 2013, elas se destacam “devido ao padrão aplicado às suas atividades de ensino e de pesquisa, passando, inclusive, a balizar o comportamento das demais entidades pertencentes ao meio, às quais serve de referência catalisadora”.

Ilustraria os passos nessa direção tomados pela UFMG, especificamente na robusta projeção do que se convencionou nomear de “internacionalização solidária”. Sublinho, desse empreendimento, a criação dos centros de estudos internacionais e, recortando um pouco mais, o Centro de Estudos Africanos (CEA/UFMG). Como tem ocorrido, tanto para o CEA/UFMG, quanto para os demais centros, o seu nascimento é laureado com a realização de jornadas que abarcam discussões específicas do eixo temático daquelas comunidades de prática científica. Antes de tudo, cumpre explicitar que o CEA, como informado em www.ufmg.br/dri, vincula-se à política de internacionalização da Universidade e um dos seus objetivos é “incrementar as atividades de cooperação acadêmica entre a UFMG e instituições de ensino superior africanas”.

A despeito da diversidade de interesses que pode atravessar o núcleo de iniciativas dessa ordem, todo cuidado se justifica para, colateralmente, não se resvalar em erros históricos nesses pretensos reajustados espaços de presença portuguesa. Sobretudo para que essa “presença” não se configure em uma derrapagem semântica de mecanismos de desterritorialização aviltante da diversidade dos povos. Ao contrário disso, qualquer ato de capilaridade institucionalizada de processos de trocas em âmbito educacional deveria conter, em seu nascedouro, a dimensão emancipatória dos fios componentes do tecido social abrangido. De outro modo, dificilmente não deslizaremos em novas “operações de cosmética identitária por demagogia política”, que colocariam em pleno funcionamento uma onda de presença portuguesa assaz glotofágica, em termos linguísticos e culturais, como aconselharia a crítica literária Inocência Mata, de São Tomé e Príncipe.

Muito adequado seria recordar a memorável conferência de encerramento da II Jornada de Estudos Africanos da UFMG, também ocorrida em junho do ano passado, para a qual foi convidada a escritora moçambicana Paulina Chiziane, que lançou pela Editora Nandyala, o testemunho Eu, mulher... por uma nova visão de mundo, escrito em 1992 para a Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e Desenvolvimento, realizada pela Unesco, em Pequim, em 1995. Em sua palestra, a combativa escritora de Moçambique exerceu com precisão e serenidade uma delicada franqueza para alertar aos presentes: i) “Se vocês não abrirem os olhos, acabará novamente tudo em sangue.” ii) “Se um indivíduo, ou indivíduos, ou estado, não deu mostra de que pode dar o merecido tratamento aos filhos africanos que receberam até hoje, então acredito que eles não estão preparados para oferecer qualquer ajuda aos africanos que não resulte em nova escravatura”.

Ouvir e considerar Paulina nos permitirá cristalizar, ao fim, a prática de uma “feitura de mundo”, na expressão do professor Roberto do Nascimento Rodrigues, do Departamento de Demografia da Face, que possibilite às universidades brasileiras contribuírem de fato para a aproximação do seu fazer transnacional na perspectiva de uma ideia de felicidade, não orquestrada pela ácida batuta do motor essencialmente capitalista.

*Bibliotecário-documentalista, doutorando em Letras/Literaturas de Língua Portuguesa na PUC Minas e diretor da Biblioteca Universitária/Sistema de Bibliotecas da UFMG