Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Ciência & tecnologia

Da “prateleira” da academia para o mercado

Líder brasileira em patentes, a UFMG impulsiona transferência de tecnologia

Pela primeira vez na sua história, a UFMG começou a receber royalties pela transferência tecnológica para a indústria farmacêutica de um produto inteiramente gerado em seus laboratórios. Patenteado, o anti-hipertensivo de longa duração desenvolvido por professores dos institutos de Ciências Exatas (ICEx) e Ciências Biológicas (ICB) é a concretização de um movimento recente nas universidades brasileiras, mas que vem ganhando força pautado na fértil discussão sobre o papel das instituições públicas de ensino diante das demandas da sociedade.

Entre as instituições brasileiras, a UFMG lidera as iniciativas de registro de patentes no País e no exterior. No Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, essa Instituição possui 146 pedidos de depósito de patentes e no Patents Cooperation Treaty (PCT), 24. Apesar do número expressivo, especialmente quando comparado aos de outras universidades – com exceção da Unicamp, que possui números bem parecidos –, a UFMG está longe de alcançar índices equivalentes aos conquistados por instituições dos Estados Unidos ou da Europa.

‘Mas esse não é um problema isolado da UFMG”, salienta Sérgio Costa Oliveira, diretor da Coordenadoria de Transferência Tecnológica (CT&IT). Para ele, o impasse reflete uma cultura de décadas instalada nas universidades públicas, que, mesmo responsáveis pelo grosso das pesquisas no País, pregavam o distanciamento em relação ao setor econômico e produtivo.

Entraves

Conceição Bicalho

Além do problema cultural, alimentado por polêmicas, inclusive de cunho filosófico, os aspectos legais também emperravam uma mudança de atitude. Marcos legais para a comercialização dos resultados de pesquisa começam a ser mais bem definidos somente agora, com a recente aprovação da Lei de Inovação. A nova postura, que incentiva e busca soluções nesse sentido, começou a ganhar forma a partir de meados da década passada. A própria CT&IT foi criada, na UFMG, somente em 1997, na mesma época em que organismos semelhantes foram instalados em outras universidades públicas. “Transferir tecnologia do setor público para o privado nunca foi consenso no meio acadêmico”, admite Sérgio Oliveira.

Os defensores da aproximação com a indústria alegam que ela estimula a inovação, respondendo às demandas da sociedade, promovendo o desenvolvimento econômico, premiando pesquisadores e gerando fontes de recursos para novas pesquisas. Já os críticos dessa tese alegam que a pesquisa nas instituições públicas não podem se render ao apelo imediatista de setores econômicos, risco que poderia, segundo esta análise, ser potencializado pelo processo de transferência tecnológica.

Proteção científica

Na UFMG, afirma o Pró-Reitor de Pesquisas, José Aurélio Garcia Bergmann, a intenção é proteger todas as pesquisas com o registro de patentes. Segundo ele, não se pode patentear apenas com a certeza da transferência da tecnologia ou do licenciamento de uso, exatamente porque é impossível ter essa garantia e seria um grande risco “perder” a produção da Universidade, que pode ser alvo de atenção tanto de imediato quanto num futuro incerto.

Por outro lado, assinala Sérgio Oliveira, “não adianta ter patentes e elas ficarem guardadas nas prateleiras”. Por isso, a decisão da Instituição é, também, “correr atrás” de mercado para suas pesquisas. “Temos que correr para não perder o bonde”, reforça o diretor da CT&IT, ressaltando a importância da criação do Núcleo de Relações Institucionais e Desenvolvimento de Oportunidades (NRI). Ligado à Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), o NRI trabalha para identificar oportunidades no mercado e para articular parcerias.

De acordo com Janaína Ribeiro Araújo, gerente de Transferência de Tecnologia do NRI, o desafio de criar e amadurecer uma proposta de transferência tecnológica na Universidade é muito grande, especialmente porque, durante muito tempo, não houve “um norte”, nem recursos humanos qualificados e sequer amparo legal para a tomada de decisões. Parte dos entraves legais da UFMG foi resolvida com a Resolução 8, de junho de 1998, do Conselho Universitário. O documento regulamenta a proteção de direitos relativos a invenções, propriedade industrial, direitos autorais e de programas de computadores, estabelecendo, inclusive, a destinação dos recursos arrecadados com a exploração desses direitos.

Divisão do bolo

Os resultados financeiros obtidos com a transferência de produtos tecnológicos são assim distribuídos: um terço aos autores, um sexto à Administração Central da UFMG, um sexto à Pró-Reitoria de Pesquisa, um sexto às Unidades Acadêmicas a que os pesquisadores estão vinculados e um sexto aos departamentos a que, também, pertencem os autores.

Apesar de mais estruturada, a Instituição enfrenta dificuldades, destaca Janaína Araújo, lembrando que o processo de licenciamento não consegue seguir o de proteção dos direitos. Além disso, a Universidade esbarra no financiamento desses processos. A diretora do escritório de Interação e Transferência de Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Marli Elizabeth Ritter, aponta outra variável que engrossa a polêmica da aproximação das instituições de ensino com os setores econômicos. Segundo ela, as universidades precisam se precaver não apenas financeiramente, garantindo recursos para a política de patentes, mas também juridicamente. “Que instituição está preparada para enfrentar um processo de quebra de patentes?”, indaga ela.

Segundo Marli Ritter, a UFRS possui um escritório de apoio à política de transferência tecnológica há sete anos. Nesse período, foram feitos 45 depósitos de patentes, três contratos de licenciamento e dois de desenvolvimento experimental. “No Brasil, o volume de recursos obtidos com a comercialização de produtos saídos das universidades ainda é pouco expressivo”, constata. Para ela, a Lei de Inovação abrirá um caminho importante para instituições e pesquisadores.

Achado

Conceição Bicalho

A falta de organismos como a CT&IT e o NRI já foi um grande problema na vida do professor Rubén Dario Sinisterra, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do anti-hipertensivo de longa duração, ora em fase de produção pelo laboratório nacional Biolab-Sanus. Ele lembra que, nos primeiros anos da década de 1990, tentou, por diferentes meios, patentear a descoberta de um microviano de uso amplo, pesquisado pelo departamento de Química do ICEx. ”Tínhamos esse achado no laboratório. Batemos em todas as portas, mas não deu. Naquela época, não havia ninguém de transferência de pesquisas”, lamenta o professor.

Logo depois, Sinisterra partiu para Boston, nos Estados Unidos, onde foi fazer pós-doutorado no Massachusetts Institute of Techonology (MIT). Lá, decidiu, também, se dedicar aos cursos sobre patentes e transferência tecnológica. “Ainda somos muito amadores. Não acuso ninguém, mas nosso estágio atual é prova de nosso despreparo. No Brasil e na América Latina, a pós-graduação nunca se preparou para lidar com os setores de produção”, assinala o professor, lembrando que foi acertada a decisão do governo de investir na formação de recursos humanos nas universidades, nas últimas três décadas.

Para a professora Erna Kroon Geessien, do Departamento de Microbiologia do ICB, a aproximação da Universidade com a indústria passa por um processo de aprendizagem, em que as duas partes estão descobrindo que a relação tem de ser de mão dupla. Uma das coordenadoras da pesquisa que desenvolveu uma vacina contra a parvovirose canina à base de proteína recombinante – o que a diferencia no mercado de produtos veterinários –, Erna Kroon acredita que os pesquisadores brasileiros têm que atender ao apelo da sociedade de participarem do desenvolvimento da produção nacional. “É claro que a ciência não pode ficar restrita a esse trabalho, mas tem que colaborar, gerando bens com o conhecimento que produz”, salienta.

Essa vacina contra parvovirose canina foi desenvolvida pelos pesquisadores do ICB em parceria com o Laboratório Hertape, há 50 anos no mercado e o único do país autorizado pela CNTBio a produzir vacinas recombinantes. A demanda pelo medicamento surgiu do próprio Hertape, conta Erna Kroon. Para o diretor de planejamento do laboratório, Ricardo Renault, a interação entre a indústria e a Universidade é uma exigência que não tem volta. “Todos só têm a ganhar. A indústria ganha com a credibilidade que as universidades possuem e as universidades ganham estímulo e estrutura para desenvolver suas pesquisas”, afirma ele.

Esse não é o único projeto que o Hertape desenvolve com a UFMG. O departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB desenvolve vacina contra a leishmaniose no cão. A previsão é de que o produto esteja no mercado até o final de 2005. Além dos contratos com esses dois laboratórios – Biolab-Sanus e Hertape –, a UFMG é signatária de outros sete contratos de transferência tecnológica.

Carteira para deficientes

Outro projeto que se enquadra na política de inovação da Universiade é o da fabricação de uma carteira escolar para portadores de deficiências físicas. Resultado de pesquisa do projetista Paulo César Carvalho, primeiro funcionário do quadro administrativo da UFMG a ter um produto patenteado pela própria Instituição, a carteira está prestes a chegar ao mercado. O produto será fabricado por Visar Comércio de Móveis, empresa especializada em móveis para escritórios, com matriz em Curitiba e uma unidade de produção em Baldim, na Zona Metalúrgica Mineira.

O projeto de Carvalho era, inicialmente, o de uma carteira de controles mecânicos, o que foi sendo modificado após a parceria com a indústria. Mesmo antes de disponível para venda, o móvel já tem encomendas de universidades brasileiras, de Portugal e da Espanha.

Segundo o sócio-diretor Simon Dias, a empresa investiu, no projeto, cerca de R$ 150 mil e está certa de que terá retorno rapidamente. “Sabemos que é um produto vendável”, ressalta, lembrando que a produção de bens patenteados é vantajosa comercialmente. “Já criamos produtos que foram clonados por outras empresas e não pudemos fazer nada”, lamenta. “A nossa expectativa é a de que a patente seja respeitada e que o Departamento Jurídico da Universidade possa garantir isso”, cobra ele, destacando, porém, que só o fato de o produto ser patenteado por uma instituição como a UFMG já impõe respeito às empresas que vivem da cópia.

Cadeia da inovação

Nos últimos anos, as universidades e instituições de pesquisa transformaram-se em palco de uma cadeia da inovação materializada pelas incubadoras de base tecnológica. É o caso da Inova, incubadora da UFMG, criada em 2003, mas fruto do Centro de Inovação Multidisciplinar, atuante na Instituição desde 1999. A gerente administrativa da Inova, Ana Maria da Matta Serrão, conta que a entidade incuba 11 empresas instituídas por professores e alunos da UFMG.

É o caso da High Power Engineering Ltda. (HPE), criada, em julho passado, a partir da experiência de pesquisadores de pós-graduação do Laboratório de Aplicações Industriais, do departamento de Engenharia Elétrica. Então estudante de mestrado, Sidelmo Silva ajudou a fundar o próprio Laboratório, no final de 1999, firmando parcerias com empresas. A idéia, diz ele, era buscar recursos na iniciativa privada ou, mesmo, em empresas públicas, a partir de prestação de serviço, para instrumentalizar o Laboratório, o que acabou dando certo. “De 2000 para 2001, o laboratório movimentou US$ 250 mil”, informa Sidelmo Silva. Ele lembra que os equipamentos desenvolvidos pela HPE, com a participação do Laboratório de Aplicações Industriais, serão patenteados, com a conseqüente transferência de royalties para a UFMG.

O estatuto da Inova ainda não prevê a participação da UFMG nos resultados das empresas e de seus produtos, mas essa é uma demanda que está sendo estudada, avisa Ana Maria Serrão.

Um dos sócios da Paz Engenharia, o doutorando em Engenharia Mecânica Fabiano Drumond Chaves, considera justa essa relação. Incubada desde julho passado, essa empresa tenta colocar no mercado a “geladeira solar”, que utiliza o princípio do sistema de absorção. Fabiano destaca que esse é um produto impossível de ser patenteado, mas ressalva que a Paz Engenharia desenvolve outros produtos que, provavelmente, serão patenteados e terão a participação da UFMG. “A incubadora faz o projeto aparecer”, acredita. Entretanto, o pesquisador destaca a necessidade de a Universidade garantir mecanismos que preservem suas próprias invenções da extrema competição das empresas. “Muitas vezes, quando uma nova tecnologia começa a despontar, uma determinada empresa compra a idéia só para impedir a comercialização desta”, alerta ele.