Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº. 6- março 2005

Editorial

Entrevista
Ministro Tarso Genro

Pesquisa e desenvolvimento
A hora e a vez dos Parques Tecnológicos

O Parque Tecnológico de Belo Horizonte
Mariana de Oliveira Santos e Francisco Horácio Pereira de Oliveira

Ciência e Tecnologia
Da "prateleira" da academia para o mercado

Propriedade intelectual e transferência tecnológica
Sérgio Oliveira Costa e Juliana Crepalde

Educação
Celeiro pedagógico

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico
Magda Becker Soares

Inclusão
Os esquecidos da Terra

Patrimônio
Ontem, hoje e sempre

Contando pedra e cal

Saúde
Rede virtual, saúde real

Excelência na prática médica
Ênio Pietra

Saúde Pública
Homem/bicho/homem,
a cadeia alimenta
r

A multiplicidade do Hospital Vterinário
Cleuza Maria de Faria Rezende

Arte e Cultura
Quatro festivais décadas

O Festival de Inverno da UFMG
Evandro José Lemos da Cunha

UFMG Diversa
Expediente

UFMG em números

Outras edições

 

Artigo

Entre a pesquisa e a ação, o desafio pedagógico

Magda Becker Soares
Professora Emérita da Faculdade de Educação da UFMG

Certamente não é o menor dos desafios, entre os muitos a que as universidades públicas devem responder, a prática do compromisso, de que elas não podem alijar-se, de articular a produção de conhecimento, que, nelas, é o que sobretudo se desenvolve, com a vida social que vai sendo tecida para além de seus muros. Não se confunda o compromisso de que, aqui, se fala com aquele outro tradicionalmente definido, como a responsabilidade de as universidades públicas desenvolverem, ao lado das atividades de docência e de pesquisa, também atividades de extensão – para usar a metáfora já tão gasta, o “tripé” sobre o qual deve construir-se uma universidade pública. O compromisso aqui mencionado designa algo mais complexo que práticas de extensão ao lado de ou para além de práticas de pesquisa – o compromisso aqui mencionado designa o dever, que se poderia qualificar de social e moral, de a universidade pública socializar o conhecer, que ela produz como fruto da pesquisa, fazendo-o chegar à sociedade que a mantém, o dever social e moral de articular o desvelamento da realidade, cujos mistérios e problemas instingam seus pesquisadores, com o desenvolvimento e o aperfeiçoamento dessa realidade, cujos problemas clamam por soluções para as quais esses pesquisadores não podem deixar de colaborar.

Maria do Céu Diel

Se a prática desse compromisso é um desafio para todas as áreas de conhecimento, talvez seja um desafio maior para a área da educação, essa faceta do tecido social em que os problemas, neste país – lembrem-se, entre outros, a baixa qualidade do ensino público fundamental e médio, os ainda altos índices de analfabetismo e os baixos níveis de letramento da população, a precariedade, do ponto de vista tanto quantitativo quanto qualitativo, das oportunidades nas áreas da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Infantil –, são tão numerosos e tão graves, e as soluções são tão urgentes, que os pesquisadores e estudiosos que atuam na área da educação, na Universidade, se vêem, por um lado, imperiosamente responsáveis por investigar a natureza e as causas dos problemas e, por outro lado, reiteradamente assediados pelas instâncias de administração da educação para que ofereçam logo alternativas, proponham planos, projetos, programas que tragam imediatas soluções.

A conseqüência é que se configura um desencontro entre expectativas da sociedade – mais especificamente das instâncias responsáveis pela prática da educação e do ensino – e pressupostos e princípios teóricos que orientam o mundo acadêmico. Para este, é preciso, antes, conhecer os problemas – sua natureza, suas causas – para, só em decorrência desse conhecer e com base nele, formular as possíveis soluções. Ou seja, sem produção de conhecimento sobre a realidade – sem pesquisa – não há como atuar de forma adequada, segura, sobre essa realidade. Mas os órgãos públicos, as redes de ensino, as escolas, os professores têm pressa, e não sem razão, e, muitas vezes, demonstram impaciência e incompreensão diante de uma certa “prudência” dos estudiosos e pesquisadores que insistem em analisar o fenômeno antes de apontar soluções para ele.

É interessante que, em área similar à da educação, a área da saúde – área também incluída entre as políticas sociais –, haja, em geral, mais “paciência” e mais compreensão diante da “prudência” acadêmica. Certamente incorrendo em uma excessiva simplificação e redução dos significados de educação e saúde, mas apenas para mais claramente defender o argumento, admitamos que, enquanto a educação cuida da mente, a saúde cuida do corpo – as políticas sociais perseguem a mens sana in corpore sano, para usar as reiteradamente repetidas palavras do poeta latino Juvenal. Porém, enquanto as ações de prevenção e de cura, para garantir o corpore sano, são longamente estudadas, submetidas a pesquisas e cuidadosamente testadas, antes de serem oferecidas como solução para os males que agridem o corpo, um processo que, muitas vezes, se prolonga por anos e anos, na área da educação, ao contrário, julga-se poder garantir a mens sana por meio de soluções sem fundamento em estudos prévios, em pesquisas, muitas vezes até se insistindo em soluções que, já tentadas anteriormente, se revelaram ineficazes – caso exemplar é a utilização, neste país, ao longo de décadas, das mesmas estratégias para solucionar o problema do analfabetismo, que resultam repetidamente nos mesmos insatisfatórios resultados. Talvez assim seja porque a agressão ao corpo se revela de forma visível, aparente, enquanto a agressão à mente não se manifesta externamente, é invisível, encoberta...

A obrigação de solucionar

Contudo, também na educação, como na saúde, as soluções devem ser fundamentadas em conhecimento dos problemas a solucionar; é dever social e moral da universidade pública produzir esse conhecimento para, sobre ele, se construírem as soluções. Só a pesquisa pode desvelar a natureza e as causas dos problemas e, desvelando-as, tornar possível enfrentá-los e solucioná-los.

Maria do Céu Diel

No entanto, é preciso reconhecer que têm razão os que se impacientam diante do intervalo que pode se interpor entre a produção do conhecimento e a intervenção na realidade orientada pelo conhecimento produzido. Voltando ao paralelo com a saúde acima tentado e, agora, buscando o avesso do que lá foi dito: o fato de que tantos tenham morrido de AIDS, antes que se descobrissem medicamentos que, pelo menos, retardassem essas mortes, de que tantos ainda morram de câncer e de tantos outros males para os quais a pesquisa ainda não encontrou soluções parece mais suportável que o fato de que tantos ainda sejam analfabetos, de que tantos não aprendam a ler e a escrever na escola, de que a tantos jovens e adultos não sejam propiciadas oportunidades de uma escolarização que lhes foi negada no momento certo... Aqui, o que se torna visível e intolerável é o adulto analfabeto, o adolescente escolarizado, mas semi-alfabetizado, o jovem e o adulto que buscam a escolarização que lhes foi negada no momento adequado, a criança sem acesso a instituições de educação infantil...

Reconhecendo a magnitude dos problemas e a urgência das soluções, como pode a Universidade, na área da educação, responder ao desafio de produzir conhecimento, como fruto de pesquisa, sem retardar a solução dos problemas que investiga? Os que militamos na área da educação, na UFMG, temos refletido sobre essa questão e tentado alguns caminhos para resolver o dilema e responder ao desafio. Um dos possíveis caminhos é atuar no intervalo: conjugar pesquisa e ação, investigação e participação, ou seja, produzir conhecimento na ação e pela ação – não é por acaso que foi na área da educação que surgiram a modalidade de pesquisa denominada pesquisa-ação, e uma modalidade de observação denominada observação participante. Um outro possível caminho é responder às demandas da sociedade, do mundo educacional, levando consigo a postura investigativa: envolver-se, sim, em ações de enfrentamento de problemas, mas, ao mesmo tempo, produzindo conhecimento sobre eles, o que permite, e freqüentemente obriga, o repensar e o reformular as ações no processo mesmo de seu movimento. São caminhos para que, sem abrir mão de seu compromisso com a produção do conhecimento e sem renunciar ao princípio de que a intervenção em problemas educacionais deve alicerçar-se no entendimento da natureza e causas deles, a Universidade não ignore a urgência das soluções e responda a ela, em respeito a este outro princípio: seu dever social e moral de articular-se com o tecido social, respondendo a suas demandas e necessidades.