Referência no direito à educação e no ensino laico, Carlos Roberto Jamil Cury nunca abriu mão da sala de aula e tem a UFMG como ‘alma mater

Alessandra Ribeiro

Ilustração de Gabriel Lisboa sobre foto de Foca Lisboa

É o próprio professor Cury quem abre a porta do apartamento, com toda simpatia. De boné escuro e traje esportivo — blusa de linha, calça com três listras laterais e tênis (ou seriam Crocs?) —ele pergunta se precisa trocar de roupa para a entrevista. Não é necessário. Ele deixa a jornalista à vontade para escolher onde se sentar. E acaba ficando naturalmente emoldurado na poltrona de madeira sobre o tapete azul da sala, entre dois quadros grandes na parede, o jardim de inverno ao fundo.

Para começo de conversa, uma pergunta trivial como “onde o senhor nasceu?” nos leva a São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, cidade fundada por mineiros que atravessaram o Rio Grande depois que o estado de Minas Gerais foi assolado por uma grande seca. É assim que ele apresenta sua terra natal, sem deixar de mencionar heranças culinárias ainda preservadas por lá, como o gosto pela couve e pela carne de porco e a influência no dialeto — não se fala propriamente ”uai”, mas “ué”, revela.

Nascido em 1945, Carlos Roberto Jamil Cury é o sétimo filho de uma família de pequenos comerciantes libaneses. Em 1956, ele iniciou “uma espécie de epopeia”, quando partiu para Araraquara, também no interior paulista, passando por Ponta Grossa, no Paraná, até chegar à cidade de São Paulo, onde ingressou na extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nossa Senhora Medianeira, fundada por padres jesuítas

Antes, já havia tido uma vivência em uma instituição religiosa ao ingressar — como seminarista — no ginásio, que era como se chamava o ensino médio na época. “Foi uma experiência muito rica, mas, ao mesmo tempo, contraditória”, resume. No seminário, leu clássicos da filosofia nos textos originais, em grego e latim, aprendeu a tocar órgão e piano e descobriu o gosto pelo cinema: lá eram exibidos filmes de diretores como Godard e Pasolini, seguidos de debates.

Tamanha erudição não foi suficiente para conseguir ingressar no mestrado em Filosofia na USP. “Na entrevista, eu disse que dominava o francês, o inglês, o latim e o grego, mas não sabia alemão. O professor falou: ‘como é que você vai ler a Crítica da razão pura’ [de Kant]?.”

Enveredou-se, então, pela filosofia da educação, durante o mestrado e o doutorado, na PUC São Paulo. O desvio na trajetória não impediu que se tornasse uma “referência bibliográfica”, expressão usada pelo atual colega no Programa de Pós-graduação em Educação da PUC Minas, o professor Teodoro Zanardi. “É um autor fundamental para pensar o direito à educação no Brasil”, define.

Raízes em BH
A epopeia de Cury estava só no começo. Em 1978, ele e o célebre professor Neidson Rodrigues, à época também doutorando na PUC São Paulo, foram convidados por outro colega, Luiz Antônio Cunha, que dava aulas no mestrado em Educação da UFMG, para reforçar o corpo docente do curso. O convite oficial foi feito posteriormente pelo então coordenador, Oder dos Santos. Na época, não se contratava por concurso.

Durante uma viagem de ônibus de São Paulo para Belo Horizonte, Cury foi convencido de que deveria vir com a perspectiva de ficar, não seria apenas uma experiência temporária. Acabou por construir uma carreira de 22 anos na UFMG, até se aposentar, no ano 2000, como professor emérito. “Tenho-a comigo como minha alma mater, e toda a preocupação que envolve as universidades públicas me toca, porque toca a UFMG”, afirma.

No reitorado do professor Cid Veloso (1986-1990), Cury assumiu o cargo de pró-reitor adjunto de Pesquisa. Desse período, ele destaca a realização de um evento com a presença dos principais dirigentes universitários, que elaboraram um documento conjunto em defesa da autonomia das instituições. “Naquele momento, a UFMG foi a instituição que organizou a discussão sobre o âmbito de aplicabilidade do artigo 207, que é o artigo da indissociabilidade de ensino, pesquisa, extensão e autonomia universitária”, recorda.

A decisão de deixar uma vida já estabelecida em São Paulo e vir para Minas, em 1978, teve o apoio da esposa, Maria Zilda Ferreira Cury, que viria a ser professora na UFMG, na Faculdade de Letras. O casal já tinha dois filhos pequenos, Roberta e Rafael. Anos depois, em Belo Horizonte, veio um terceiro — temporão — Tomás. Hoje, eles têm também um neto, Otávio, de nove anos, que aparece na foto de perfil do avô no WhatsApp, entre os galhos de um pé de jabuticaba. [Maria Zilda adentra a sala e se apresenta exatamente nesse ponto da conversa, como se estivesse no script. Mas só volta depois, quando ele sai de cena.]

O casal, que em dezembro de 2022 comemora bodas de ouro, se conheceu na sala de aula. Maria Zilda foi aluna de Cury no ensino médio. Ele dava aulas de filosofia e ciências sociais no antigo Sacré-Coeur de Marie, um colégio de freiras tradicional na elite paulistana, onde ela era bolsista.

No ambiente acadêmico, os Cury construíram uma relação de cooperação mútua. “De um lado, eu leio as coisas que ele escreve, dou sugestões nas interseções com a literatura. De outro, ele contribui por ter um diálogo fácil com a política — políticas da educação, especialmente —, que é a área principal dele, junto com a filosofia”, conta a professora. As trocas compreendem sugestões de bibliografias e discussões sobre os trabalhos que cada um está desenvolvendo. Os dois também têm posicionamentos políticos semelhantes e compartilham o interesse pelo cinema. Temos bastante afinidade de gosto”, diz ela.

Maria Zilda expressa certo constrangimento ao falar do companheiro, Beto, já que não consegue esconder sua admiração. “Tenho muito orgulho de ser professora e me orgulho também do professor, acadêmico, pesquisador que meu marido é. Ele realmente é uma pessoa ímpar, um exemplo”, revela, emocionada, depois de se perguntar quantas centenas de alunos os dois formaram. “A UFMG criou espaço para que pudéssemos ter essa afeição acadêmica, doar o que temos de melhor, que é a capacidade de reflexão, de não acomodação, de valorização da ética, sempre”, afirma.

Atuação política
Cury nunca abriu mão da docência, mesmo nos períodos em que ocupava funções administrativas. “É professor há 55 anos”, conforme descrição no seu currículo Lattes. Em junho de 2000, quando se aposentou da UFMG, já integrava a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.

“Chega um certo momento, você diz assim: é hora da renovação”, pensou. Não esperava que fosse tão rápido. Em agosto do mesmo ano, começou a lecionar na PUC Minas, a convite do reitor da instituição, conta.

looping veio em janeiro do ano seguinte, quando recebeu uma ligação com o convite para assumir a presidência da Capes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao Ministério da Educação. Chegou a pensar que fosse um trote. “Em nome de quem você está falando?”, perguntou. Era em nome do presidente da República. “Venha para Brasília conversar com o ministro da Educação, Cristóvam Buarque”, disse a voz do outro lado. “O Cristóvam foi muito transparente. Ele disse: você não é o meu candidato, mas, tão logo seu nome saiu, teve imediato apoio da comunidade científica, e eu não irei contra”, revela. O mandato durou somente até setembro. “O Ministério tinha uma prioridade absoluta com relação à educação básica, o que é legítimo. E eu achava que a pós-graduação, dentro do sistema federal de educação, não deve competir com a educação básica, mas também não pode ser secundarizada”, argumenta.

Cury teve assento, ainda, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), como vice-presidente (2018-2019). Atualmente, é membro do conselho nacional da entidade que se dedica à educação. Entre outros cargos de relevância em instituições diversas, integrou a Câmara de Ciências Humanas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

“O Cury não é só o intelectual que produz referências teóricas. Ele participou do Conselho Nacional de Educação, da Capes, e da construção da educação brasileira após 1988, de forma muito efetiva. Não só nas reflexões, mas também na atuação política, no sentido melhor dessa palavra, e também na participação nos órgãos para produção e efetivação do direito à educação”, resume Teodoro Zanardi, colega de docência na PUC Minas.

Como professor, Zanardi ressalta o respeito com que Cury trata seus orientandos, independentemente do nível de formação, o que contribui para que os alunos se orgulhem dos próprios trabalhos. “Ele dá atenção a todos que orienta da mesma forma, isso é perceptível. Tem o mesmo cuidado, faz anotações, debate com os estudantes, seja aquele que está no curso de pedagogia, fazendo o trabalho final de graduação, ou aquele que está no doutorado”, observa.

A educação no trato com as pessoas também é uma característica marcante de Cury, segundo Zanardi. “Eu o percebo nos eventos, participando de palestras, bancas, como uma pessoa muito atenciosa, muito elegante, sem deixar de ser crítico, de fazer os comentários que julga necessários, mas agindo sempre de uma forma respeitosa, que não inferiorize a pessoa ou não a deixe constrangida, pois ele sempre se mostra aberto à possibilidade de uma reconstrução”, conta.

Uma rápida pesquisa no repositório da UFMG por trabalhos que tiveram a orientação de Cury reitera a dedicação do professor, manifestada nos agradecimentos dos alunos: “Pela confiança e crédito no meu trabalho e pela orientação paciente e estimulante”, registrou Sandra de Fátima Pereira Tosta, em 1989. No ano seguinte, Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo agradeceu “as chamadas ao trabalho e a paciência da espera”; depois ressalta “as críticas serenas e sugestões objetivas sobre o texto”. Maria das Mercês Bonfim Ambrosio dedicou-lhe as seguintes palavras em 1988. “Ao Cury, antes que a qualquer outro. Foi através do que ele considera seu trabalho como orientador que pude reunir vontade e capacidade, nas diversas fases em que a dissertação esteve inconcluída, para concluí-la”. 

À francesa
Zanardi compartilha com o colega o gosto pelo cinema. Eles costumam conversar sobre filmes em cartaz e também trocam indicações de livros e séries. “Como viveu na França, Cury tem um gosto por cinema francês”, diz o amigo.

Em 1994, 16 anos depois de ingressar como professor na UFMG, Cury sentiu que faltava uma experiência internacional em sua trajetória. Foi, então, cursar o segundo pós-doutorado na Universidade de Paris V — o primeiro foi na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco. Voltou ao Brasil no ano seguinte e, em 1998, prosseguiu com os estudos pós-doutorais na França, desta vez na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, acompanhado da esposa, que também fazia o pós-doutorado, na Sorbonne Nouvelle — Paris III.

Em junho de 2022, foi homenageado no programa Bibliografia viva, transmitido no canal da Faculdade de Educação da UFMG no YouTube. Um dos participantes, o professor Luiz Antônio Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro — o mesmo que o levara para a UFMG — reconheceu a contribuição do amigo na história da educação brasileira e seu pioneirismo em discussões sobre laicidade nesse campo. Ele fazia referência à análise publicada em 2001 no livro Cidadania republicana e educação: governo provisório do Mal. Deodoro e Congresso Constituinte de 1890-1891. “Talvez tenha sido a primeira pessoa que tratou desse período da história e tem um capítulo inteiro sobre a laicidade na educação, em uma época em que os pesquisadores brasileiros ignoravam esse tema”, destaca o docente da UFRJ.

Para Cury, a laicidade é importante porque garante que o espaço escolar, sobretudo das escolas públicas, seja preservado de aspectos que concernem à vida privada dos sujeitos. Por envolver sobretudo a emoção, levar a religião para o espaço escolar implica estimular atitudes discriminatórias, conscientes ou inconscientes, adverte.

“Eu sou cristão, mas não sou favorável a um crucifixo no Supremo Tribunal Federal, por mais que eu respeite o crucifixo. Tenho um em cima da cama por opção nossa, mas não o quero no Supremo, como não quero ensino religioso nas escolas públicas”, argumenta.

Foi em território francês, quase 30 anos atrás, que Cury viveu o que chama de experiência da laicidade no sentido mais radical. “Meu filho tinha que esconder, ou melhor, podia usar isto aqui, mas olha, pequenininho, e ficava debaixo da camisa”, revela, enquanto mostra, ele próprio, o delicado cordão com um pequeno crucifixo, até então escondido sob a blusa.