Influência da UFMG transcende a presença física nos municípios onde está estabelecida 

 

Mauricio Campomori*

Ilustração de Marcelo Lustosa / Cedecom UFMG

Ilustração de Marcelo Lustosa | UFMG

O período decorrido desde o início do século 20 foi palco de uma série de eventos que provocaram notáveis transformações em nosso modo de viver. Em pouco mais de um século, houve duas guerras mundiais, as primeiras viagens espaciais e a chegada do homem à Lua. A ciência e a tecnologia avançaram a ponto de se transformarem em promessa de felicidade, e a energia nuclear, ainda que tenha sido utilizada com fins pacíficos, também foi empregada para guerra e destruição. Nesse período, tivemos acesso à teoria da relatividade e à psicanálise, testemunhamos a era do rádio e, depois, a da televisão, enquanto o cinema encantava multidões. O mundo foi surpreendido por duas pandemias. Na área médica, deu-se o desenvolvimento dos antibióticos e dos contraceptivos. Foi criado o transistor, e os semicondutores propiciaram vislumbrar novas possibilidades para a eletrônica. Surgiram os computadores, a informática e a internet. Arte, cultura e entretenimento se transformaram em conceito, escala e intensidade antes impensáveis. Nesses 120 anos, revolucionaram-se os costumes e reestruturaram-se as relações sociais, de gênero, de trabalho e de poder, como nunca antes, talvez.

A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi criada e se desenvolveu dentro desse mesmo período. Ao completar 95 anos de existência, é fácil perceber que ela foi não apenas testemunha, mas personagem de destaque em quase todas as cenas desse tempo de intensas transformações em nossas vidas, nossa cultura e nossas cidades. 

Em 1920, 23 anos depois de sua fundação, Belo Horizonte tinha aproximadamente 55 mil habitantes, número ainda inferior ao de outras cidades do estado, como Juiz de Fora e seus quase 120 mil habitantes, ou Montes Claros, com quase 70 mil. No Rio de Janeiro, então capital da República, naquele mesmo ano, viviam aproximadamente 1,15 milhão de pessoas, e São Paulo já contava com cerca de 580 mil habitantes. Dez anos depois, em 1930, a população de Belo Horizonte havia mais que dobrado e passava de 116 mil habitantes.

 

 

Ilustração de Marcelo Lustosa | UFMG

Nesse  começo, tudo estava por ser feito: não só prédios, ruas e esgotos, mas também as instituições e a vida social habitual. As classes alfabetizadas, transplantadas sobretudo de outras regiões mineiras, em especial da antiga capital Ouro Preto, tinham diversas necessidades de educação, de lazer e também de arte, literatura, teatro, música, pintura, entre outras. É exatamente nesse contexto que a UFMG, criada em 1927, começa a fazer parte da vida da cidade.

“A ideia de constituir uma universidade significa fazer uma aposta civilizatória. Nesse sentido, desde Bolonha e Paris, onde essa instituição se anunciou pela primeira vez, há quase mil anos, as universidades são apostas na ideia de educação e emancipação, ou seja, na ideia de que é possível desenvolver a capacidade humana de intervir e modificar o mundo.” 

À primeira vista, os vínculos que a UFMG mantém com Belo Horizonte — bem como com as centenas de cidades mineiras ou mesmo as de fora do estado — decorrem primordialmente de suas ações de extensão, ensino e pesquisa. É natural imaginar que a presença da UFMG em Minas Gerais seja especialmente marcante nas cidades onde estabeleceu seus campi e infraestruturas de apoio a suas atividades acadêmicas presenciais, mas é importante lembrar que a Universidade também se destaca em todos os lugares onde repercutem as atividades que desenvolve em suas várias áreas de atuação, seja no campo científico, seja no campo cultural. Desde os impactos sentidos pela atuação da UFMG como geradora de conhecimento e indutora de desenvolvimento até as diversas transformações socioculturais que decorrem da atividade de uma instituição que cultiva por princípio a liberdade de pensamento, a ideia da Universidade tende a ir muito além de sua presença física nos municípios onde ela se estabelece. A ideia de constituir uma universidade significa fazer uma aposta civilizatória. Nesse sentido, desde Bolonha e Paris, onde esse tipo de instituição se anunciou pela primeira vez, há quase mil anos, as universidades são apostas na ideia de educação e emancipação, ou seja, na ideia de que é possível desenvolver a capacidade humana de intervir e modificar o mundo.

Um bom exemplo de como a UFMG interage com a cidade está na relação da sua Escola de Arquitetura com Belo Horizonte. Poucos anos depois de sua fundação, ocorrida em 1930, a atuação dos arquitetos que lecionavam na Escola e das novas gerações nela formadas já marcava a cidade. Edifícios e espaços icônicos passavam a fazer parte não apenas do cotidiano, mas também do imaginário das pessoas, ao ponto de se transformarem em referências da própria cidade. De certo modo, a marca dos estilos e das ideias arquitetônicas associadas a diferentes épocas constitui um tipo de memorial da cultura e da sociedade dessas épocas. Ilustra isso o fato de que, a partir da década de 1940, é praticamente impossível pensar na cidade de Belo Horizonte sem lembrar, por exemplo, do conjunto arquitetônico da Pampulha, concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer e pelo paisagista Roberto Burle Marx, e realizado na gestão do então prefeito Juscelino Kubitschek. Além de se constituir como primeira paisagem urbana moderna de Minas e marco da arquitetura moderna nacional, os edifícios e a paisagem da Pampulha acabaram por se tornar um tipo de símbolo da cidade. 

Sobre essa capacidade da arquitetura de representar a sociedade e a cultura de um tempo e de um lugar, é o próprio Juscelino quem diz, em seu discurso na formatura dos engenheiros-arquitetos da Universidade de Minas Gerais, em 1951: Mais que a obra literária, mais que a música, a arquitetura espelha, na fisionomia do edifício e da cidade, o grau de civilização de uma época, o apuro de seu gosto plástico. 

Tendo sido a única escola de arquitetura de Minas Gerais até 1980, a Escola de Arquitetura da UFMG contribuiu ativamente com a construção do perfil da jovem capital. A face mais visível dessa atuação é a própria formação dos profissionais — planejadores e projetistas para os serviços públicos e privados — que envolve desde a elaboração da legislação urbana até os projetos dos edifícios e espaços. Nesse viés, decisivo também foi e continua sendo seu papel na formação e desenvolvimento de todas as outras escolas de arquitetura e urbanismo que hoje coabitam a cidade de Belo Horizonte e o estado de Minas Gerais. Uma face menos evidente, mas igualmente importante, é que a relação entre o fazer da Escola de Arquitetura e a vida da cidade se revela em histórias que, com o passar do tempo, não podem mais ser dissociadas, já que a arquitetura e o urbanismo da cidade tendem a estar relacionados com a forma como as pessoas espacializam a sua cultura, constituindo o que alguns autores chamam de lugar antropológico, necessariamente histórico, relacional e identitário.

Importa dizer que, nos dias atuais, cidade, arquitetura e urbanismo dizem respeito não apenas à ideia de edifícios, lugares e espaços funcional e esteticamente concebidos para serem construídos e ocupados pelas pessoas, mas, também, a tudo o que diz respeito ao direito a esses espaços e a essas cidades, para que elas possam ser usufruídas por todos os seus habitantes, com acesso universalizado a bens, direitos e serviços e com representatividade e oportunidades para todos.

Em tempos atuais, existe um enorme potencial de democratização da vida, da sociedade e da política, representado, por exemplo, pela crescente oferta de acesso às informações, propiciada pela expansão e pela popularização da rede mundial de computadores ou internet. Por outro lado, existe, também, uma evidente tendência de concentração de renda e de riquezas em uma pequena parcela da população mundial, e esse fenômeno tem-se acentuado, e seus impactos, aumentado brutalmente em anos recentes. De acordo com dados do IBGE, em 2017, uma minoria mais rica formada por 10% dos brasileiros concentrava 43,3% da renda total do país. Na outra ponta, os 10% mais pobres detinham apenas 0,7% da renda total. Mais que isso, alguns dos novos modelos das relações de trabalho e poder têm provocado a exclusão de enormes contingentes populacionais dos processos decisórios sobre a economia, sobre a sociedade e, em consequência, dos processos decisórios sobre a cidade. 

A UFMG não poderia estar, obviamente, alheia a essas transformações. A arquitetura e o urbanismo continuam, hoje, posicionados no foco de um debate que questiona suas relações de subordinação ao poder econômico, seja pela necessidade de financiamento da sua materialização, seja pela reprodução das práticas econômicas e comerciais estabelecidas, tanto nos canteiros de obras quanto em suas relações com o mercado que os consomem como produto. Essa discussão não pode ser evitada. Importa dizer que, nos dias atuais, cidade, arquitetura e urbanismo dizem respeito não apenas à ideia de edifícios, lugares e espaços funcional e esteticamente concebidos para serem construídos e ocupados pelas pessoas, mas também a tudo o que diz respeito ao direito a esses espaços e a essas cidades, para que elas possam ser usufruídas por todos os seus habitantes, com acesso universalizado a bens, direitos e serviços e com representatividade e oportunidades para todos.

Nessa perspectiva, como instituição que se desenvolve sobre os ideais de excelência acadêmica e relevância social, comprometida com princípios de solidariedade, autonomia, liberdade e democracia, a UFMG se interessa cada vez mais em participar da construção de um mundo — em suas variadas escalas — onde nunca prevaleça o interesse em remunerar o capital. A todos nós interessa participar da construção de um mundo onde se celebre a aposta civilizatória de que falávamos — corporificada pela própria Universidade —, onde as lógicas do mercado não se apliquem a questões de dignidade, de liberdade e de cidadania. Interessa, principalmente, contribuir para que, assim como a cultura e a educação, nossas cidades não sejam entendidas apenas como mercadoria, mas, antes, como direito coletivo e bem público de primeira necessidade.

 

Ilustração de Marcelo Lustosa | UFMG

* Arquiteto e urbanista. Professor associado do Departamento de Projetos e diretor da Escola de Arquitetura da UFMG, membro do Conselho Estadual de Patrimônio Cultural de Minas Gerais e presidente da Associação de Escolas e Faculdades Públicas de Arquitetura da América do Sul (Arquisur)