Educadora Magda Becker Soares, que completou 90 anos no dia do aniversário da UFMG, foi homenageada em coletânea de cartas escritas por colegas e discípulos

Ewerton Martins Ribeiro

lustração de Gabriel Lisboa sobre foto de Foca Lisboa | UFMG

Ilustração de Gabriel Lisboa sobre foto de Foca Lisboa

No ano passado, o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação (FaE) lançou um livro com uma centena de cartas escritas em homenagem a Magda Becker Soares, emérita da UFMG que chegou aos 90 anos em 7 de setembro, o dia em que a Universidade completou 95 anos de fundação. Nesta edição comemorativa, a Revista DIVERSA apresenta trechos dessas manifestações reunidas no e-book Cartas para Magda.

Esses excertos dão a dimensão da relevância de Magda para a alfabetização infantil brasileira — uma legatária do pensamento de Paulo Freire, de quem foi amiga. “Considero que trabalho com os mesmos pressupostos e os mesmos ideais que ele, com a mesma utopia”, disse ela certa vez, em entrevista à revista Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. “Não considero que a principal contribuição de Paulo Freire é um método de alfabetização. A grande contribuição que ele deu foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo”, afirmou.

Organizado por Delaine Cafiero Bicalho, Egon de Oliveira Rangel e Francisca Maciel, o livro Cartas para Magda (Parábola Editorial, 2021) está disponível em e-book no site do Ceale. Os depoimentos a seguir, extraídos das cartas de professores da educação básica, alunos da graduação e da pós-graduação, orientandos de mestrado e de doutorado, autores de livros didáticos, jornalistas, bibliotecários, pesquisadores, colegas e amigos que tiveram sua trajetória impactada pelo trabalho da professora, revelam a importância de Magda Becker Soares para a educação brasileira e para a UFMG. Os trechos escolhidos foram levemente editados.

Magda, por seus leitores e admiradores

Anne-Marie Chartier
“Lendo Magda, descobri duas coisas: que as explicações para o fracasso escolar, no Brasil, eram semelhantes às atribuídas ao fracasso que também ocorre na França, o que era tranquilizador. Ao mesmo tempo, eu entendia que as análises teóricas dos livros não me ensinariam as diferenças entre as escolas da França e do Brasil. Para conhecê-las, eu teria que ir até as escolas. E foi o que eu fiz. […] Como eu fazia pesquisas e trabalhava também com formação de professores, tinha aprendido, por prudência, a manter separadas essas duas partes de minha vida profissional. Eu pensava que haveria sempre um abismo entre, de um lado, as questões colocadas pelos pesquisadores e, de outro, os problemas que os professores tinham que resolver todos os dias. Magda me fez pensar que eu poderia, talvez, estar errada. Foi a segunda coisa em que ela me fez acreditar, ou seja, que há uma maneira de fazer pesquisa que poderia se aproximar das realidades da sala de aula. […] Lendo Magda, continuarei a acreditar que a pesquisa teórica e o conhecimento prático do ofício podem caminhar no mesmo passo.”

Josélia Alves Barreto Leal
“Num dia alvissareiro, Contagem teve a maravilhosa ideia de convidar você para falar-nos sobre Emília Ferreiro e a psicogênese da língua escrita. Naqueles idos dos anos 1990, você nos apresentou a “reinvenção da alfabetização”. Quanto ensinamento! Você conseguiu colocar-nos para refletir. Havia dois métodos: o sintético e o analítico, que deram origem a várias cartilhas que jamais questionaram como o aluno pensava e o que ele sabia. Aprendemos a ver que a criança é um ser ativo e participante nesse processo de aprendizagem. Por meio da psicogênese, pudemos descobrir como a criança vai construindo a compreensão da língua escrita. Como você bem afirma, aprendemos que a criança não é introduzida no mundo da escrita quando entra para a escola, mas que o faz de uma maneira informal e ‘ametódica’, desde o nascimento. Maravilhada por seus ensinamentos, refiz o meu caminho como alfabetizadora.”

Selma Martines Peres
“Desde o primeiro encontro, você me tirou da zona de conforto, me provocando a pensar um caminho mais atento em relação ao outro, ao público, aos filhos e às filhas da classe trabalhadora. Sim, eu os via antes, mas era com olhos cobertos por uma espécie de catarata social, que me impedia de ver as mazelas da sociedade. Fracasso da/na escola, me demorei ali, me desconstruí, pois eu queria ver e aprender. Da minha primeira experiência com a docência até hoje, agora atuando no ensino superior, você não me deixou mais. Meu muito obrigada!”

Fernanda Colli
“Estou escrevendo para lhe agradecer a oportunidade defendida pela senhora de podermos garantir a liberdade de nossos alunos; pela luta incansável para que a sociedade se torne detentora de seu direito de autonomia, garantido não apenas pela nossa alfabetização, mas pelo letramento, já que os dois devem seguir juntos, graças a estudos conclusivos realizados pela senhora.”

Marciani Militão Vieira
“Observo que sua carreira, no início, foi direcionada à alfabetização, lecionando nas séries iniciais para crianças de baixa renda, com sua experiência nas escolas e pesquisas no campo educacional. Tendo em vista sua busca pelo saber no processo de ensino e aprendizagem, fez mestrado e doutorado sobre a escola pública. Trabalhou cinco anos em uma creche, onde aprendeu com as crianças da educação infantil e observou as condições de vida dos alunos nas favelas e periferias. No entanto, a sua maior pesquisa sobre alfabetização se deu na cidade de Lagoa Santa, em Minas Gerais, quando a Secretaria de Educação a convidou para um trabalho educacional, porque as avaliações dos estudantes estavam com rendimentos negativos. Trabalhou com a rede pública escolar do local e procurou melhorar a qualidade de ensino nas escolas. Foi lá que surgiu o lema: ‘Todas as crianças têm o direito de ler e escrever’. […] Não pensar em como vou ensinar ou que método vou usar, mas, sim, em como a criança vai aprender, como vou acompanhar o desenvolvimento cognitivo do meu aluno e refletir se o professor conseguiu atingir o aluno positivamente em seu desenvolvimento da maneira que ensina.”

Luciana Paula Rincon
“Sou cotidianamente inspirada por você a buscar uma formação ampla, qualificada, crítica, reflexiva, humanizada e que me possibilite oferecer aos meus educandos e educandas um processo de educação e de alfabetização que vise à multiplicidade de práticas em que eles e elas possam se conscientizar de que são sujeitos de direitos, capazes de superar dificuldades e produzir cultura, história e conhecimentos, em especial na EJA — modalidade que acolhe no nosso país milhões de pessoas que tiveram durante sua vida e na educação o estigma do fracasso, da negligência, da negação, da discriminação e da exclusão.”

Carla Viana Coscarelli
“O respeito que você tem pelos seus alunos, a sua generosidade, o seu bom humor, a sua clareza de ideias e a sua paixão pelo que você faz são inesquecíveis e contagiantes. Te agradeço por estar presente na minha vida e por ter me ensinado tanto sobre alfabetização, letramento e afins, mas, sobretudo, a ser atenta e humana.”

Ana Paula Pedersoli
“Com você, Magda, aprendi que precisamos ser fortes, corajosas, saber denunciar, mas, ao mesmo tempo, saber enunciar, agir frente aos desafios da vida. Você me ensinou a viver com dignidade, respeito e compromisso uma contradição: ‘o inconformismo com a realidade social, que busca expressão na crítica, e o compromisso com a prática social, que obriga à ação nessa mesma realidade que se critica’ […] com você aprendi também o que dizia Paulo Freire, que ‘não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão’. Siga firme na luta pela qualidade da educação pública!”

Maria Celina de Assis
“Magda traz para o mundo acadêmico uma reflexão importantíssima: saiamos dos muros acadêmicos, vamos lá no chão da escola, razão maior de nossa existência, vamos lá saber o que será e o que deve ser. Amo demais essa passagem da carreira dessa educadora incrível que nos traz muita inspiração e que reflete a minha forma de pensar e de me ver como parte desse processo.”

Respostas que me confortam

O livro de cartas em homenagem a Magda Soares traz, ao final, uma resposta da mestra às homenagens recebidas. Nela, a professora escreve: “Muito me emocionou a frequência com que vocês destacam a interação que construo com quem me lê ou ouve, a empatia que nos uniu e une, a proximidade e a simplicidade com que escrevo e falo de teorias e práticas… disso eu não sabia, é se ver do ponto de vista do outro, é se ver tal como eu gostaria de ser vista.”

No último parágrafo de sua resposta, Magda faz esta breve reflexão de sua trajetória:

“As cartas, todas elas, trouxeram respostas a dúvidas e incertezas que tenho vivido nestes últimos anos de minha vida pessoal e profissional. Aos 88 anos [hoje, 90], estou sempre a refletir sobre o passado, a me analisar, fico olhando para trás e me perguntando: será que valeu a pena a vida vivida? Será que vou permanecer viva na memória e na saudade dos que demonstram, em suas cartas, as marcas que minhas aulas, meus livros, minha presença deixaram nessas e nesses que me declaram, em cartas, o que signifiquei para cada uma e cada um? Nesta fase da vida, fico refletindo e me analisando: ‘o que é afinal que realizei nesta minha passagem pelo planetinha?’ As cartas me deram respostas que me confortaram. Quantas professoras e professores disseram que mudaram o rumo de suas opções profissionais em decorrência de minhas aulas e palestras, da leitura de meus livros, textos, artigos… declararam a influência que eles têm tido em trazer a primeiro plano as crianças das camadas populares e as escolas públicas! Que cada uma e cada um de vocês recebam minha gratidão e minhas muitas saudades da convivência com vocês. Guardem-me sempre em seus corações.”

Revolução no ensino de português
Fundadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação (FaE), criado em 1990, Magda Becker Soares é autora de inúmeros livros didáticos, vários deles incontornáveis para a alfabetização e o letramento brasileiros: Alfabetização: a questão dos métodos (Editora Contexto, 2017), que ganhou o Prêmio Jabuti de 2017 na categoria Educação e pedagogiaAlfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever (Contexto, 2020), a última publicação da autora, e a célebre coleção Português através de textos, publicada pela Editora Moderna nas últimas décadas do século passado, uma referência para todos os que fizeram o “primeiro grau” naquele período. “É seguro dizer que essa coleção mudou o ensino de português no Brasil: o texto passou a ser a porta de entrada para o ensino da gramática, em vez do contrário. Isso foi uma revolução”, afirma Maria Cecília de Lima, revisora de textos da UFMG.