Doutoranda em Antropologia pela UFMG e primeira mulher indígena eleita deputada federal por Minas Gerais, Célia Xakriabá é, ao mesmo tempo, depositária da confiança dos velhos sábios do seu povo e modelo para os mais jovens

Matheus Espíndola

Célia Xacriabá
Ilustração de Gabriel Lisboa

Célia Xakriabá nunca frequentou uma escola convencional. Quando atingiu a idade escolar, em meados da década de 1990, já havia escolas com ensino de matriz indígena nas reservas de Minas Gerais. Por isso, ela aprendeu a história do Brasil pela perspectiva dos povos originários — e costuma contar que, ao contrário da grande maioria das crianças brasileiras, não ouviu da professora que o descobridor do país foi Pedro Álvares Cabral.

Com apenas 13 anos, participou ativamente do processo de criação da Articulação Rosalino, movimento das populações tradicionais da região Norte de Minas Gerais que visa, principalmente, defender politicamente os direitos territoriais. Por sinal, a vocação para a liderança vem de família. “Seu Hilário, pai de Célia, é referência na luta pela terra por via da organização indígena”, conta Lucinha Alvarez, professora aposentada da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG. Ela dedicou os últimos 27 anos à educação em comunidades indígenas e, durante o período em que atuou no território Xakriabá, conheceu Célia, ainda criança.

Anos depois, de 2009 a 2013, Lucinha foi sua professora na graduação em Formação Intercultural para Educadores Indígena (Fiei), na FaE. “Ali, Célia ampliou seu universo, conheceu outras experiências e outros irmãos indígenas. Posteriormente, foi trabalhar como professora na aldeia Xakriabá, onde consolidou a abordagem da cultura e sabedoria ancestral em sala de aula”, relata.

Em 2015, com apenas 25 anos, Célia assumiu a coordenação de Educação Escolar Indígena no âmbito do governo de Minas. A proposta de uma escola diferenciada para os vários povos indígenas do estado foi uma de suas principais bandeiras. No ano seguinte, ingressou no curso de mestrado em Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, é doutoranda em Antropologia na UFMG.

Embora cada vez mais imersa nos contextos político e acadêmico, Célia Xakriabá jamais deixa de lado sua formação ancestral e os valores e saberes tradicionais aprendidos desde muito cedo com os índios mais velhos de seu povoado, como reforça a professora Lucinha: “Ela tem um pé no mundo, outro na aldeia. Sempre que retorna de suas viagens, conecta-se com o sagrado, no seu território de origem. Isso a fortalece.”

Tradição e inovação

Há muitos anos, o gestor cultural Léo Lessa acompanha a trajetória de Célia Xakriabá, de quem é amigo. Ele a define como uma referência na luta em defesa da cultura no seu sentido mais amplo, que “relaciona tradição e invenção”.

“Esse trânsito é fruto de extrema criatividade. Célia, antes de tudo, é uma artista. Talvez esse seja o termo mais exato para qualificá-la de uma ‘perspectiva branca’, já que as existências indígenas não separam a arte da vida”, discorre. Nesse sentido, Lessa destaca que a amiga “encarna e presentifica” tal indissociabilidade entre a vida e a arte. “Sua indumentária tradicional, seus cantos, seus ritos, são parte do seu dia a dia, da sua luta, do seu fazer político.”

Além de ativista e professora, Célia Xakriabá é filósofa, poetisa, performer e artista visual. Pinta, desenha e costura suas próprias roupas. Em púlpitos, diante de câmeras ou holofotes, está sempre de rosto pintado e ostenta um exuberante cocar. Com as palavras, encanta.

“Seu talento para tecer vocabulário e se comunicar com pessoas muito diversas é uma de suas grandes potências, não apenas na atuação política, mas na vida afetiva íntima”, diz Lessa. “É uma pessoa brilhante e inteligentíssima, de sensibilidade rara”, assevera.

Essa percepção é corroborada pela professora da FaE Ana Gomes, que também lecionou para Célia Xakriabá durante a graduação e orientou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). “As pessoas se deslumbram com sua maneira de propor e colocar as questões. Muitos se referem a ela como dona de uma fala iluminada. Encanta, tem o poder da comunicação, de tocar as pessoas. O que ela diz, além de ter significado forte, é dito de forma poética. Sua estética é singular, assim como a ressonância de sua sonoridade”, detalha.

A engenheira agrícola Adriana Rocha, que dividiu apartamento com Célia Xakriabá durante o período em que ela trabalhou em Belo Horizonte, não economiza ao descrever a amiga: “Sua palavra, quando solta, carrega o riso que nela habita. Ela tem como arma o sorriso que vem da alma. Revoluciona com o riso, com a graça, com a luz”.

Capacidade de ‘devorar’

“Célia é uma mulher com raízes cravadas no território Xakriabá, que se forjou na luta de seu povo e traz o legado da ancestralidade dos povos originários de Minas Gerais. Tem a capacidade muito particular de hackear, devorar, engolir a cultura branca ocidental. Faz essa tradução com maestria”, observa o antropólogo Rafa Barros, que foi seu colega no gabinete da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG).

Como assessora parlamentar, Célia acompanhou as discussões para a criação da lei Aldir Blanc [que dispunha sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural], da lei Paulo Gustavo [que assegura verba a estados e municípios para ações culturais] e também a concepção do projeto de lei que estabelece o marco regulatório de fomento à cultura.

Sua candidatura ao Congresso Nacional foi aventada ainda nas eleições de 2018. A investidura seria condicionada à aprovação de líderes partidários e também indígenas, além da anuência de seus parentes mais próximos. “Por fim, avaliou-se que ainda não era o momento ideal para que concorresse. Assim, naquele período eleitoral, Célia trabalhou na equipe de suporte a Sônia Guajajara, então candidata a vice-presidente na chapa de Guilherme Boulos”, lembra Rafa Barros.

Em 2022, o plano voltou à tona e, mais uma vez, foi submetido ao diálogo com familiares e lideranças indígenas. “Ao aceitar o convite para pleitear uma vaga na Câmara dos Deputados, Célia reconheceu que, pela primeira vez, os xakriabás teriam não só a prerrogativa de colocar sua voz à disposição da construção do mandato, mas também de corporificar sua presença nesse processo”, detalha o antropólogo. Com 101.154 votos, Célia Xakriabá foi a primeira mulher indígena eleita deputada federal na história de Minas Gerais. Ela foi indicada para compor a equipe de transição do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva no grupo que discute políticas para os povos originários.

A respeito do mandato que terá início no ano que vem, Rafa Barros considera que a amiga é embaixadora da possibilidade de transformação mais significativa que a sociedade brasileira pode alcançar — “que é cosmológica e cosmopolítica”. “Traz no seu corpo, no seu canto, na sua voz, nas suas palavras, nas suas pinturas e grafismos, a possibilidade de reinvenção desse mundo tão caduco, carcomido, desgastado, esgotado. Do ponto de vista filosófico, de pensamento, de formulação política, ela sempre está ensinando muito para todos nós”.

Ele define Célia Xakriabá como uma “intelectual orgânica” e desdobra: “É uma sábia das palavras, dos saberes e dos sabores. Uma poetisa originária, força da natureza, potência política. Será um farol na defesa da igualdade, da justiça socioambiental, do respeito às diversidades e das formas de ser e estar no mundo, tendo a cultura e o fazer cultural como princípios.”

Para o amigo, a futura parlamentar é dotada de uma capacidade extraordinária de “elaborar coletivamente e construir o bem comum”. “Celinha vê o mundo como um lugar de encantamento, e a vida, como possibilidade infinita de criação. Ela é generosidade — e projeta generosidade para as pessoas e sobre as coisas. Tem astúcia e ginga para lidar com o espaço árido da institucionalidade política e, ao mesmo tempo, sagacidade de elaborar a parte do sensível, de poetizar o mundo”, reconhece.

Elo geracional

O precoce engajamento de Célia Xakriabá em diversas causas e sua vertiginosa ascensão no universo da política moldaram uma personalidade de raro teor, com capacidade de ser um forte elo entre diferentes gerações, como avalia sua antiga professora Ana Gomes: “Ela tem a absoluta confiança dos mais velhos e sábios do seu povo, ao mesmo tempo que é modelo para os mais jovens. É uma ponte muito firme e potente”.

A docente entende que a posse de Célia Xakriabá no Congresso Nacional é o bem-sucedido desfecho de “um chamado nascido internamente”. “Ela tem clareza e disponibilidade e se compromete completamente com esse chamado que surgiu no interior de seu povo, e que se amplia, abarcando todos os movimentos sociais com os quais vem dialogando”.

Nesse sentido, Ana Gomes retoma o pensamento do líder Valdemar Xakriabá, a quem a UFMG concedeu, recentemente, o título de Notório Saber. “Seu Valdemar dizia que os jovens herdam a luta. Célia é, portanto, herdeira desse legado. É obstinada, persistente, não deixa cair a energia. Sabe que sua luta vale a pena, é necessária, é fundamental. Não somente para a vida de alguns, mas pela vida de todos”, conclui.