Aos 100 anos e em plena atividade intelectual, professora Ângela Vaz Leão continua liderando grupo de pesquisa sobre a obra poética de Dom Afonso X

Ewerton Martins Ribeiro

Ilustração de Gabriel Lisboa sobre imagem da PUC TV Minas

Costuma-se dizer que o Brasil começou a se pensar moderno em 1922, a partir da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, evento que mudaria o que estava por vir. Curiosamente, o ano também é uma pedra fundamental da competência desenvolvida no país para se analisar as coisas da era supostamente menos “moderna” do mundo, o medievo, de modo a ser possível perscrutar também nesse período saberes e histórias caros ao presente.  

Dito de outro modo: no dia 1º de outubro de 1922, nascia em Formiga, no Centro-Oeste de Minas, Ângela Tonelli Vaz Leão, que mais tarde se tornaria uma das grandes referências latino-americanas no campo da literatura medieval – em particular, no que concerne à poesia galego-portuguesa do rei-poeta Dom Afonso X, da qual é contumaz analista e tradutora.

Professora emérita da UFMG, Ângela Vaz Leão foi a primeira diretora da Faculdade de Letras (1969-1973), tendo sido a responsável por sua efetiva implementação. A formação em Letras já existia desde 1940, na então Universidade de Minas Gerais (UMG), mas, só nos últimos meses do fervilhante ano de 1968, o curso veio a se desmembrar da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para configurar uma unidade autônoma. “Toda a estruturação da Fale é fruto da gestão de Dona Ângela, que envolveu atividades de ensino, pesquisa e extensão e o início da pós-graduação”, anotou, certa vez, o professor Jacyntho Lins Brandão – ele também um emérito da Faculdade de Letras, que, após ter sido aluno de Ângela, mais tarde também dirigiu a Fale por duas vezes, na gestão 1990-1994 e na gestão 2006-2010. 

“O que dizer de Ângela Vaz Leão em meia dúzia de linhas? Talvez resumir tudo assim: é uma personalidade marcante. No sentido de que deixa sua marca de excelência em tudo o que toca. Nas instituições por que passou foi o que ela fez. De um modo muito especial, por exemplo, a nossa Faculdade de Letras guarda seu DNA, pois nasceu sob sua batuta. Mas é nos seus alunos que ela mais imprimiu seu influxo. Tive o privilégio de ser um deles. E pela vida afora, quando penso o que deve ser um professor, tenho o também privilégio de não titubear: é ser como Dona Ângela”, diz Jacyntho, em depoimento enviado à DIVERSA.

 

Entre a docência e o empreendimento na educação

Quando Ângela Vaz Leão recebeu a medalha Mendes Pimentel, em 2011, Jacyntho fez questão de lembrar que a professora também foi responsável pela estruturação da pós-graduação em Letras da PUC Minas (nos níveis de mestrado e doutorado), instituição na qual também já atuava como professora desde 1961, e continuou a atuar, ainda mais intensamente, após sua aposentadoria da UFMG. Também foi uma das responsáveis pela elaboração dos projetos do programa de pós-graduação da PUC Minas. O programa, segundo Jacyntho, foi “concebido com a finalidade de capacitar professores de escolas e faculdades do interior do Brasil e da América Latina”, o que se vê traduzido neste depoimento extraído de entrevista de Ângela concedida às professoras Eneida Maria de Souza e Rachel Esteves Lima: “O que tem valor é o trabalho que a gente faz, principalmente para ajudar os outros a crescer. Para ajudar a educação deste país”.

A última prova desse empenho pela educação brasileira – e da vitalidade dessa intelectual – é o livro Milagres de ressurreição nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, em que Ângela dá sequência ao seu trabalho de reunião, organização e tradução (do galego-português para o português) das 427 Cantigas de Santa Maria compostas por Dom Afonso X na segunda metade do século 13. Nesse novo volume, lançado em plena pandemia, em 2021, a agora centenária pesquisadora traduz, anota e analisa 28 desses manuscritos medievais. A obra é a sexta de uma série focada na divulgação da poesia medieval galego-portuguesa, em particular dos poemas do rei-poeta Dom Afonso X.

Ângela Vaz Leão foi ainda a primeira presidente da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), durante a gestão 1973-1975, tendo colaborado decisivamente para o estabelecimento da instituição – e segue hoje coordenando o grupo de pesquisa que ela criou na PUC Minas, centrado na obra poética de Dom Afonso X.  O grupo é composto de ex-alunas que, em sua quase totalidade, concluíram o mestrado e o doutorado sob a sua orientação. Após o afastamento da professora das atividades nos campi, essas alunas decidiram continuar o trabalho com a professora, em sua própria residência. A seguir, outros três discípulos de Ângela Vaz Leão homenageiam a mestra, em depoimentos escritos especialmente para esta edição da DIVERSA.

 

Sueli Maria Coelho, professora e diretora da Faculdade de Letras (gestão 2021-2025)

Dona Ângela Vaz Leão é uma personalidade muito importante para nossa instituição, onde atuou como professora, gestora e pesquisadora por 28 anos, de 1959 a 1987. Graduada em 1946 pela sexta turma do curso de Letras, à época ofertado pela Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, Dona Ângela foi fundadora e primeira diretora da Faculdade de Letras da UFMG (1969-1973), trabalhando sempre, e de modo incansável, para o crescimento e o reconhecimento de nossa querida Fale. Poliglota, versada em história da língua e em literatura medieval, além de detentora de vasto saber, Dona Ângela contribuiu para projetar nosso curso de Letras no cenário nacional e internacional e foi condecorada com incontáveis medalhas, prêmios e distinções honrosas. Tive o privilégio de ser aluna dessa grande mestra durante o curso de mestrado em Língua Portuguesa, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em 2001. Matriculei-me numa disciplina dedicada ao estudo das Cantigas de Santa Maria, sua grande paixão. Encantava-me o profundo conhecimento de Dona Ângela acerca da história da língua e da literatura medieval. Nossas aulas eram às segundas-feiras, e Dona Ângela, que também coordenava o Programa de Pós-graduação à época, chegava para a aula diretamente de seu sítio, trazendo sempre alguma guloseima para nosso lanche, que fazíamos comunitariamente, aproveitando também esse momento para nos nutrir de seu conhecimento, já que conviver com ela é sempre uma oportunidade para aprender. Como eu era a única aluna de língua portuguesa matriculada na disciplina, Dona Ângela sempre se preocupava se meus objetivos estavam sendo atendidos e, em todas as aulas, tinha, para enriquecer minha reflexão, alguma curiosidade sobre meu objeto de estudo. Além disso, fez questão de participar, na condição de coordenadora do Programa de Pós-graduação, da sessão pública de minha defesa de dissertação e de me cumprimentar pelo trabalho e pela conquista do título.

 

Sônia Queiroz, professora aposentada da Faculdade de Letras

A professora Ângela Tonelli Vaz Leão, que sempre tratamos por Dona Ângela, é uma grande estrela, no sentido mais forte do termo. Uma mulher iluminada, iluminando caminhos e pessoas. Na minha vida profissional, Dona Ângela foi uma estrela-guia. Inicialmente, eu representante estudantil na Congregação da Faculdade de Letras, tive oportunidade de conhecer seu pulso forte como diretora. Alguns anos depois, fui aluna dela na Pós-graduação em Letras, que ela coordenava no início dos anos 1980. Foi um encantamento desde a primeira aula. As luzes que ela lançava sobre a história das línguas nos levavam até outros planetas, em exercícios de imaginar e aplicar métodos de análise em línguas nunca dantes conhecidas. Nunca mais deixei de seguir as luzes dessa estrela-guia, que brilha e brilha, agora centenária.

 

Thiago Saltarelli, professor da Faculdade de Letras

Dona Ângela é minha mestra no sentido mais profundo da palavra. Costumo brincar – e é uma brincadeira séria! – que com ela tive uma experiência de aprendizagem bastante próxima da relação mestre/aprendiz dos tempos antigos, antes que a burocratização do ensino trouxesse um alto grau de impessoalidade e pasteurização ao ambiente escolar e acadêmico. Assim, para além do estudo teórico, aprendi muito observando sua própria prática. Com Dona Ângela, as fronteiras entre o acadêmico e o pessoal, entre o ensino e um convívio mais íntimo se diluem. Muitas vezes trabalhamos, meus colegas do grupo de pesquisa e eu, em sua casa, e as reuniões são alegradas por um bom café e um dedo de prosa! Devo grande parte da minha formação em Filologia, Linguística Histórica e Literatura Medieval aos seus ensinamentos, que foram  cruciais para que anos depois eu pudesse me tornar professor da UFMG nessa área. Para além da minha experiência pessoal, ela é uma referência incontornável para a história da Faculdade de Letras e para a Filologia em Minas Gerais. Em relação ao primeiro ponto, foi nossa primeira diretora, após a desintegração da antiga Faculdade de Filosofia pela reforma de 1968, e ajudou a estabelecer as bases da nova faculdade. Quanto ao âmbito da Filologia, sua prática de professora e pesquisadora sempre prezou por duas grandes vocações da área: o caráter transdisciplinar e um humanismo verdadeiramente democrático.