Pensar o futuro é urgente, defendem Davi Kopenawa e Ailton Krenak
Conferência que reuniu lideranças indígenas abriu ciclo que comemora os 95 anos da UFMG e o Bicentenário da Independência
Líderes dos povos originários abriram série de conferências que celebram aniversário da Universidade -| Foto Foca Lisboa | UFMG
Citando o colega cientista e ativista Antonio Nobre, Krenak afirmou que a cultura ocidental, inclusive no meio acadêmico, “silencia o coração em favor de uma hiperatividade do cérebro. E parece que esse corpo que as pessoas constituem é só um veículo para carregar o cérebro de um lugar para outro. As pessoas circulam por aí, não cuidam do resto do corpo e ficam com um cérebro superinteligente fazendo o corpo levá-lo de um lugar para outro. Essa imagem cômica e trágica sugere que as pessoas estão virando zumbis, sem cuidado com os lugares onde o corpo pisa, e o corpo pisa em tudo no mundo. Esses corpos ambulantes carregadores de cérebros precisam ser afetados com sentimento”, defendeu.
Ainda citando Antonio Nobre, Krenak explicou que a terra é um organismo vivo, com humor e inteligência. “Obviamente, ela tem um modo de operar diferente dos humanos. A energia dela atua o tempo inteiro numa potência muito grande, produzindo vida. Ela opera em amor incondicional. Eu achei chocante um cientista, principalmente da área da ciência em que ele se destaca [Nobre é agrônomo], usar esse termo poético de que a terra opera em amor incondicional. Ou seja, ela tem um funcionamento simpático, movido por empatia. E como diz o poeta, essa empatia já é um tipo de amor. É o amor que move a vida no planeta. Um cientista dizer isso pode parecer estranho. É admissível que um poeta diga isso: os poetas podem pirar, podem dizer ‘a terra falou comigo, a terra dança, a terra é linda’. É por isso que, às vezes, invoco Carlos Drummond de Andrade como meu escudo invisível, porque se alguém me acusar de estar sendo poético, eu falo: bom, tem o Carlos Drummond de Andrade”, brincou.
Futuro, hoje Na sequência, Krenak destacou a palavra “futuro”, que dá nome à série que celebra os 95 anos da UFMG. “O futuro, essa palavra, dispara em cada um de nós, na célula de cada um, uma expectativa sobre alguma coisa que vai acontecer depois: amanhã, por exemplo. O futuro tem que ser pelo menos amanhã, porque é quase impensável fazer confundir essa energia que dispara o futuro com este momento em que estamos nos encontrando aqui, neste salão, agora”, refletiu.
Na sequência, o pensador defendeu a importância de trazer o futuro para o agora. “Que tal a gente deixar a nossa mente baixar a temperatura, ficar no nível do coração e imaginar o futuro agora? Por que depois? Imagine só: você encontra a sua mãe e diz pra ela: depois, no futuro, eu te abraço. Por que nós temos tanta dificuldade de invocar o futuro aqui, agora?”, indagou Ailton Krenak.
“Uma vez usei uma expressão na mídia que se espalhou por todo lado: o futuro é ancestral. Foi uma resposta que dei a uma pergunta sobre futuro. Foi uma prospecção, porque, na cultura do ocidente, o napa pensa que o futuro é um outro lugar. Não aqui, nem agora. O futuro é uma parábola sobre uma coisa que não existe. Ninguém pode vencer o amanhã, o amanhã não está à venda. Quando você cogita alguma coisa que não pode acontecer aqui e agora, só depois, você está fazendo um jogo, é um bingo: vamos ver se dá. O futuro é: vamos ver se dá pra gente parar de comer a terra? Vamos ver se dá pra gente ser sustentável? Vamos ver se dá pra gente inventar uma outra narrativa sobre nós e o mundo para que a gente continue comendo a terra?”, disse Krenak.
Ailton Krenak recorreu à fala de Kopenawa para afirmar, assim como o colega, que “os brancos não têm mais capacidade de consertar os estragos causados no eixo da Terra”. Segundo ele, “agora ela está brava, com febre, e pode dar uma patada na gente. Assim como uma mãe amorosa, ela pode sentar a mão no pé do ouvido da gente, e a gente pode sair voando por aí, aos milhões”. Por isso, ele reforçou a necessidade de pensar o futuro agora. “Isso implica responsabilidade, em não negociar mais nada, em não aceitar os termos que o capitalismo impõe: de sermos uma sociedade da mercadoria e pronto. Dizem que a única coisa que cresce indefinidamente no espaço é o câncer, então a gente tem que parar com essa doideira de crescer. A ideia de desenvolvimento e progresso é gatilho do consumo, da mercadoria, de toda a predação do corpo da terra”, afirmou.
Colaboração entre UFMG e povos indígenas Responsável por coordenar o evento, a professora Ana Maria Rabelo Gomes, da Faculdade de Educação da UFMG, iniciou sua fala visivelmente emocionada, exibindo uma camisa em homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, mortos recentemente, como retaliação ao trabalho de denúncia feito na Amazônia. “Falar chorando é parte da nossa experiência. Noventa e cinco anos da UFMG com a presença dos povos indígenas: não existe maneira melhor de iniciar essa celebração. A parceria com Davi e com Ailton, desde a organização da Aliança dos Povos da Floresta, é uma história antiga. A presença dos dois nos conforta, nos alimenta, nos reanima, nos energiza e nos ajuda a ter força, inspiração, criatividade para estar à altura do desafio que temos aqui”, disse.
A reitora Sandra Regina Goulart Almeida afirmou que a mesa, com a presença de Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, “era um sonho nosso para iniciar as comemorações dos nossos 95 anos.” Em sua fala, a reitora também destacou o “duplo sentimento” que marca a recepção dos líderes e ativistas indígenas na Universidade e lembrou que o evento “também é o nosso espaço de homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, para que não nos esqueçamos jamais da brutalidade que sofreram. A UFMG está em luto por suas perdas e se soma à indignação social contra as violências sofridas pelos povos indígenas e por defensores da causa desses povos.”
“Por um lado, é um momento especial para todos nós, pois começamos um novo ciclo de conferências em comemoração aos 95 anos da nossa instituição e também ao Bicentenário da Independência, efemérides comemoradas no dia 7 de setembro. Então essa é a nossa satisfação. Por outro lado, vivemos um contexto adverso e temerário do nosso país: em uma tensão de forças arcaicas e retrógradas que tramam diligentemente para que tudo permaneça como sempre foi, mantendo o modelo de exploração e destruição que marca o legado de uma sociedade ainda colonial, injusta e desigual como a nossa. Por outro lado, alimentamos a crença de um futuro que nos aguarda em condições melhores, mais humanas, mais justas e mais dignas. É por isso que o início desta conferência e desta celebração não poderia ser realizado de outra forma, a não ser abrindo um espaço de reflexão aos povos originários a quem devemos tanto e que têm sido afetados pelo contexto atual e pela tensão que eu mencionei. Eles nos lembram da importância da nossa existência aliada a uma resistência contínua”, afirmou a reitora.
Pensamentos e ideias que inspiram Uma das principais atividades da programação que comemora o aniversário de 95 anos da UFMG e o bicentenário da Independência, o ciclo de conferências Futuro, essa palavra será realizado mensalmente, até setembro, mês em que a Universidade foi fundada. Todas as atividades vão contar com a participação de lideranças e pensadores contemporâneos, das mais diversas áreas. As conferências vão abordar temas centrais para a sociedade contemporânea, que indicam como a UFMG projeta pensamentos e ideias que inspiram as novas gerações. Seu nome é inspirado na expressão Liberdade, essa palavra, presente no livro Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que entenda.”