As idéias de Maturana e sua repercussão

Paulo Margutti *

segunda metade do século 20 foi marcada pela ascensão de uma nova abordagem científica de caráter sistêmico, em que as ciências da vida desempenham um papel paradigmático. Nesta nova perspectiva, as idéias do biólogo chileno Humberto Maturana exercem um papel fundamental. Embora seja bastante difícil resumi-las, vale a pena uma pequena introdução, com o objetivo de motivar estudos posteriores.

De acordo com Maturana, a organização comum a todo sistema vivo unicelular é a autopoiese ou produção de si próprio. A célula é uma rede de processos, na qual cada elemento constitutivo participa da produção de outros. A rede produz os seus componentes e é produzida pelos seus componentes. Neste sentido, ela produz a si mesma e possui auto-organização ou fechamento operacional. Nosso sistema nervoso, por exemplo, funciona como uma rede fechada de processos: ele é uma rede auto-organizada e auto-referente, de tal modo que a percepção das coisas não constitui a representação de uma realidade exterior, mas sim a criação de um mundo particular. É por isso que uma rã cujo olho foi cirurgicamente girado por 180º lança a língua para o lado errado, quando tenta caçar um inseto. É por isso que nossa percepção do mundo vem acompanhada de uma série de ilusões. O que nos permite corrigi-las é o fato de interagirmos com o ambiente. São as interações que ajudam a determinar a correção de nossas percepções. Maturana dá o nome de acoplamento estrutural ao domínio destas interações.

Deste modo, todos os sistemas vivos são conhecidos através de dois domínios de descrição complementares e independentes. No domínio do fechamento operacional (fisiologia), tudo aquilo que é aceito como perturbação do sistema é determinado pela dinâmica interna do próprio sistema. Neste caso, esta dinâmica é relevante para a descrição, mas não as interações com o ambiente. No domínio do acoplamento estrutural (conduta), a estrutura do ambiente dispara mudanças no sistema, sem, entretanto, especificá-las ou dirigi-las, e a estrutura do sistema dispara mudanças no ambiente, também sem especificá-las ou dirigi-las. Neste caso, as interações com o ambiente são relevantes para a descrição, mas não a estrutura interna do sistema. Assim, quando o sistema vivo sobrevive num dado ambiente, temos uma história de mudanças estruturais em ambos, as quais são mutuamente disparadas e congruentes. De acordo com Maturana, embora as duas descrições sejam válidas e necessárias para uma compreensão mais completa dos sistemas vivos, podemos criar problemas quando transitamos inadvertidamente de um domínio de descrição para o outro.

O modelo biológico de Maturana pode ser aplicado na explicação de diversos fenômenos importantes. O conhecimento, por exemplo, pode ser definido como comportamento adequado ou ação congruente com o mundo. Do ponto de vista do fechamento operacional, nós, seres vivos, criamos um mundo; do ponto de vista do acoplamento estrutural, experimentamos interações com o ambiente e corrigimos nossa imagem do mundo a partir delas.

A linguagem, por sua vez, surge a partir do acoplamento estrutural entre seres humanos. Ela depende de uma convivência íntima e colaborativa, que gera uma rede de conversações (conjunto de comportamentos coordenados mutuamente disparados entre os falantes). Nesta perspectiva, a linguagem não envolve transmissão de informação, mas apenas coordenação comportamental num domínio fechado de acoplamento estrutural. As trocas comunicativas constituem verdadeiras coreografias refinadas de coordenação comportamental. Os nossos conceitos são todos derivados destas interações comportamentais.

Quanto à sociedade, ela surge das interações cooperativas e recorrentes entre seus membros. Um sistema social é uma rede de interações que funciona como um meio no qual os seres vivos se realizam como tais e conservam sua organização e adaptação. A base das interações cooperativas humanas é a emoção biológica do amor. Esta constitui a condição dinâmica espontânea de aceitação, por um sistema vivo, de sua convivência com outro sistema vivo. Enquanto fenômeno biológico, o amor não precisa de fundamentação racional. Uma sociedade sem amor se desintegra: não há competição sadia, porque a negação do outro envolve a negação de si mesmo.

Como se pode ver, o modelo de Maturana desloca a explicação de uma série de fenômenos para o nível biológico, naturalizando-os. Isto promete modificações significativas em diversas disciplinas, como, por exemplo, a lingüística, a psicologia, a sociologia, a antropologia etc.

Embora Maturana diga que está fazendo ciência e não filosofia, parece-me perfeitamente possível efetuar uma apropriação filosófica de suas idéias. Penso que seu modelo fornece os elementos adequados para superar muitos dos enigmas tradicionais, como a oposição realismo/idealismo, através da abordagem da dupla descrição. Outro aspecto digno de nota é que Maturana inclui uma dimensão ética no seu modelo, ao afirmar a emoção do amor como base do social. Isto tudo significa uma aproximação harmoniosa entre ciência, filosofia e sabedoria de vida, permitindo uma sintonia maior entre nossa maneira de ver o mundo e a realidade que vivemos. É nesta direção que tem caminhado meu trabalho filosófico.

* Professor titular do departamento de Filosofia da Fafich

 





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Nº 1308 - Ano 27 - 07.03.2001