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Nº 1561 - Ano 33
18.12.2006

A salvação pelo discurso

Dissertação da Fale investiga elementos do filme Narradores de Javé a partir de teoria semiolingüística

Maurício Guilherme Silva Jr.

pequena Javé será inundada. Sobre ela, o progresso lançará as águas de uma hidrelétrica. Como forma de impedir a catástrofe, que levaria ao limbo seus “pertences” físicos e metafísicos, os moradores decidem escrever um livro sobre a história do local. O documento tornaria o lugarejo um patrimônio da humanidade, impedindo sua destruição. Apesar de ousada, a idéia esbarra numa limitação estrutural. Se toda a população é analfabeta, como tornar real o objeto que pode salvar a própria terra?

Argumento principal do filme Narradores de Javé (2004), dirigido por Eliane Caffé, o dilema da salvação é “resolvido” através da figura de Antônio Biá (José Dumont), antigo desafeto de dez entre dez moradores do lugarejo, mas único capaz de colocar no papel a esperança da permanência. Apesar de arisco e absolutamente alheio ao ideal dos conterrâneos, Biá passa a ouvir os “causos” de todos. Daí surge o que, na visão da pesquisadora Carolina Assunção e Alves, que estudou o longa através de abordagem semiolingüística, chama de “construção em abismo”.

O conceito trata, em resumo, dos efeitos criados pela presença de histórias interpostas uma nas outras. A investigação de Carolina Assunção culminou com sua dissertação de mestrado Narradores de Javé: uma análise semiolingüística do discurso fílmico, defendida em novembro junto ao programa de Pós-Graduação em Lingüística da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG.


Cena do filme Narradores de Javé, tema de estudo semiolingüístico desenvolvido na Fale



O olhar da pesquisadora sobre o filme de Eliane Caffé revela-se multifacetado. Ela buscou analisar os recursos discursivos (verbais e cinematográficos) utilizados em Narradores de Javé, além de descrevê-los e revelar como se relacionam, a fim de construir a obra. Sua proposta foi desvelar as estratégias narrativas do discurso fílmico, com base na Teoria Semiolingüística da Análise do Discurso e em alguns estudos teóricos sobre a linguagem cinematográfica e a narrativa.

Para isso, a autora recorreu, principalmente, às teorias de Patrick Charaudeau. “Minha intenção foi estudar o discurso fílmico na teoria. Como é construída a temporalidade que vai e volta? De que forma se dá o efeito de realidade e ficção?”, questiona Carolina. Assim que Antônio Biá passa a ouvir as histórias, o longa-metragem entra em complexa trama de tempos e discursos. Cada relato de experiência gera, na tela, flashbacks que transportam o espectador a outros cenários, sensações, ideologias, identidades. Neste ponto, a contradição – humana por natureza – aparece como marca. “Certos personagens relatam os mesmos episódios com óticas diferenciadas. O peso da própria participação, por exemplo, é muito diferente”, explica.

Diálogos possíveis
Como todo “ato de linguagem” está ligado a um “contrato” entre os envolvidos, Carolina Assunção procurou compreender diversas relações entre os sujeitos sociais do longa, dos roteiristas, que têm um “ideal” particular de espectador e dos atores com seus inúmeros improvisos. Segundo ela, todo filme é formado por um “eu-comunicante”, caracterizado pelo diretor e seus roteiristas, uma equipe de produção e um público, cujo perfil é, na maior parte das vezes, imprevisível.

“Busquei compreender a linguagem em seus diversos aspectos. Investiguei ‘traços’ psicológicos, sociais e comunicacionais”, resume. Tais olhares fizeram com que os discursos do filme fossem “dissecados” a partir dos mecanismos de construção de identidade, contexto histórico e características técnicas (no caso, cinematográficas). Em Narradores de Javé, Carolina investigou tudo o que forma a “trama” e o produto estético, como imagens, roteiro, diálogo, som e edição.

Assinado por Eliane Caffé e Luiz Alberto de Abreu, o roteiro foi escrito 17 vezes. Para chegar ao texto final, os autores participaram, até mesmo, de expedições ao sertão. O que caracteriza o texto, segundo a pesquisadora, são os efeitos de realidade e ficção. “Uma série de categorias semiolingüísticas podem ser identificadas. O real convive com coisas sobrenaturais”, diz. Para quem assistiu ou não ao filme, resta a questão: a arte – e sua complexidade de discursos – é capaz de salvar nossas cotidianas Javés?

 


Dissertação: Narradores de Javé: uma análise semiolingüística do discurso fílmico
Autora: Carolina Assunção e Alves
Orientador: Renato de Mello
Defesa: 17 de novembro de/2006, dentro do programa de Pós-Graduação em Lingüística da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG