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Nº 1571 - Ano 33
2.4.2007

Corpos em exibição

Betânia Figueiredo*

"D

o assombro nasce o conhecimento.” Francis Bacon

Há dois anos, tive a oportunidade de visitar, em Atlanta, Estados Unidos, a exposição Boddies - The Exibhition, que está percorrendo diversas cidades norte-americanas e européias e acaba de chegar a São Paulo. Por onde passa, desperta a curiosidade e, em alguns casos, polêmicas e debates acalorados. Esse alvoroço deve-se à exposição de corpos humanos. Embora sejam trabalhados com técnica inovadora, isso não minimiza o fato de os protagonistas da exposição – o acervo exposto –, serem cadáveres, exibindo diversos detalhes do corpo humano. Já havia lido algo a respeito,
mas nada suficientemente capaz de impedir o impacto ao visitar a exposição, que polêmicas à parte, é sucesso de público por onde passa.

Trata-se, sem dúvida, de uma mostra que deve ser incluída no conjunto das exposições de ciência ou, para utilizarmos a denominação mais corrente, “exposição de divulgação de ciência”. O corpo humano é o tema principal, mas apresentado de forma inusitada: corpo humano nu expondo o sistema muscular, o sistema esquelético, a estrutura de nervos, ou o conjunto de tudo isso, além de diversos cortes anatômicos surpreendentes, por fugirem dos padrões de estudos anatômicos desenvolvidos nos espaços acadêmicos. Há, nos corpos expostos, expressão e movimento, alguns estão jogando bola, outros sentados, com a cabeça apoiada na mão, outros andando de forma casual. Os músculos expostos não perderam sua cor; com a técnica utilizada é possível ver corpos que nos dão impressão de que neles ainda circula sangue, afastando a imagem de cadáveres pálidos e reforçando a lembrança da vida.

O tratamento técnico dado aos corpos não ressalta a morte, mas a vida que ali habitou. Alguns objetos acessórios nos fazem relembrar o movimento dos corpos: uma bola sendo arremessada, uma cadeira como suporte do corpo cansado, um objeto que remete à lembrança do homem no trabalho. Em outras situações, são utilizados recursos como projeção de pequenos trechos informando a função dos órgãos, seus movimentos, imagens com detalhes das células e assim por diante. A ousadia em eleger o corpo humano como objeto de exposição é explorada intensamente. Uma das imagensé exposta de forma destacada, a única apresentada em estante de vidro: o conjunto da estrutura de nervos que vai da cabeça aos pés, um feixe de nervos maravilhosamente branco, leve, delicado, por onde circulam informações preciosas do nosso corpo e que nos lembra que estamos diante de uma obra de arte. Tanto pelo trabalho técnico ali realizado como pela beleza estética do resultado.

Os corpos analisados nas aulas e laboratórios de anatomia não pertencem a ninguém em especial e, ao mesmo tempo, pertencem a todos, em prol da ciência. O que vemos na exposição é diferente. Os corpos têm expressão e, apesar de sem vida, reconstituem os movimentos e expressões da vida. Ali não se pretende esgotar nenhum estudo de anatomia, mas despertar curiosidade, dúvidas, perguntas. Em muitos momentos, somos tomados pela perplexidade e assombramento. Talvez esteja aí o inicio de um importante processo de aprendizagem ou algo que ficará guardado em nossas lembranças e será utilizado no desenvolvimento de algum raciocínio ao longo das nossas vidas: uma perna quebrada, uma dor inesperada, um distúrbio na ordem provisória do corpo em crescimento. Há uma grande polêmica em torno da aprendizagem nos museus. A frase de Bacon, Do assombro nasce o conhecimento, aponta para um caminho possível do conhecimento. Ao longo da visita presenciamos as manifestações de assombro, de olhos arregalados, de espanto, encantamento e admiração. Ninguém – crianças, jovens, adultos e idosos – passa impunemente pela exposição. Neste sentido ela cumpre um dos seus objetivos, o de despertar a curiosidade: “Mas é assim?”, “Sou assim?”, “É assim que funciona?”, “E do outro lado?”, “Que maravilha!”.

A técnica utilizada permite que o corpo seja apresentado livre de suportes mais elaborados. A museografia completa todo o conjunto apresentando informações que podem ser desdobradas na consulta ao site, em investigações em casa, na sala de aula, no consultório médico, em conversas sobre o corpo, seja ele saudável ou adoentado.

Trata-se, sem dúvida, de um investimento lucrativo. Tanto que existem duas empresas que disputam os créditos – e os milhões de dólares – da técnica utilizada e da autoria da exposição.

A exposição só é possível com a mescla de dois aspectos importantes relacionados à história da ciência e da técnica. O primeiro refere-se à técnica utilizada, que inova ao apresentar o corpo livre dos tanques de formol e ganha a graça do movimento que já não existe mais. A técnica de preservação dos corpos baseia-se na utilização de polímeros. Outro aspecto é a nossa cultura que permite a exposição do corpo não para fins de ciência no sentido da elaboração da pesquisa, mas para divulgação da ciência diante do olhar espantado e admirado de milhares, quiçá milhões de expectadores ao redor do mundo.

Por outro lado, trata-se de uma exposição do âmbito da ciência e, como tal, questões da história da ciência são pertinentes. Ao longo de toda a exposição, informações relativas à estrutura de conhecimento, desenvolvida no Ocidente, são apresentadas com a delicadeza de indicar-nos que se trata de uma das estruturas possíveis de compreensão dos mecanismos e organização do corpo humano. Cada conjunto de conhecimento e explicação está situado historicamente; o corpo é o mesmo, mas a forma de entendê-lo ao longo do século passou por transformações e modificações. A exposição nos convida a conhecer melhor o nosso corpo.

No Brasil, a exposição recebeu o nome de Corpo humano: real e fascinante e reúne 16 cadáveres de homens e mulheres e 225 órgãos dissecados. Fica em cartaz até 27 de maio em São Paulo, na Oca do Parque Ibirapuera: av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portão 3, telefone (11) 6846-6000. Mais informações na página www.exposicaocorpohumano.com.br.


* Professora do departamento de História da Fafich e integrante do Grupo Scientia da UFMG

 

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