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Nº 1571 - Ano 33
2.4.2007

Entrevista Luiz Eduardo Soares

Um poço sem fundo

Tatiana Santos
Arquivo pessoal
Luiz Eduardo Soares
Luiz Eduardo: perplexidade dos intelectuais

Aos que imaginam que a escalada da violência alcançou a barbárie, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares lembra que os casos de crimes escabrosos já remontam há pelo menos duas décadas. “O problema é que nos acostumamos com esse quadro de violência e banalizamos a situação”, argumenta Soares, um dos intelectuais brasileiros que se dedicam ao estudo da violência e de suas causas. Ex-secretário nacional de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Governo do Rio de Janeiro, ele esteve na UFMG, no início de março, para proferir a aula inaugural do curso de Especialização em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp). Pouco antes da aula, o antrópologo recebeu a reportagem do BOLETIM para esta entrevista, na qual defende a combinação de ação policial inteligente e projetos socioculturais para combater e prevenir a violência.

Os argumentos mais utilizados para justificar a criminalidade são a miséria, a invisibilidade social e a falta de oportunidades. O senhor acredita que esses são motivos suficientes para explicar uma onda crescente de violência?

É importante compreender que existem formas distintas de manifestação da violência, com as causas mais diversas possíveis. A desigualdade, as estruturas sociais e a exclusão da cidadania concorrem para seu agravamento, mas as causas não são mecânicas e imediatas. Se fossem, teríamos milhões de brasileiros no tráfico e na violência, quando na verdade esse exército é formado por um grupo muito pequeno de pessoas. Tome o exemplo da criança que cresceu em uma família em crise. Sem abrigo em casa, ela pode crescer se sentindo culpada ou rejeitada. Pode não se identificar com a escola e transferir esses sentimentos para aquele ambiente. Isso, somado à experiência da invisibilidade social, desencadeia processos que culminam com a dissolução de sua auto-estima. Pesquisas demonstram que as crianças que testemunham a violência doméstica ou são vítimas dela ou estão mais propensas a se vincular a práticas violentas. Elas podem, por exemplo, tornar-se vulneráveis ao tráfico de drogas. Em casos assim, é possível verificar conexões entre miséria, invisibilidade e prática da violência. Contudo, não podemos esquecer a violência do tráfico por atacado, que viabiliza o tráfico no varejo. No primeiro, atuam personalidades de colarinho branco, que falam língua estrangeira, têm ensino superior, acesso a softwares de última geração e a mecanismos de lavagem de dinheiro internacional. Há, ainda, a violência indireta provocada por quem se envolve com a corrupção. E os operadores dessas modalidades de violência não são filhos da miséria ou da desigualdade.

Qual a melhor forma de enfrentar a violência?

A violência precisa ser enfrentada com trabalho policial e, de forma preventiva, com ações sociais e culturais. O ideal seria que a polícia se antecipasse aos fatos, trabalhando com inteligência e planejamento. Mas se for preciso agir de forma repressiva para controlar as manifestações de violência, a polícia deve atuar no marco da legalidade. Por outro lado, o trabalho sociocultural é indispensável. No caso da criança que rouba para cheirar cola, essa “bomba-relógio” poderia ter sido desarmada se essa criança tivesse sido apresentada a alternativas construtivas, capazes de reverter uma trajetória negativa.

O caos na segurança pública, exposto em casos como o da morte de João Hélio, mostra que estamos próximos de uma crise maior?

Na década de 80, os casos de manifestação da violência já eram escabrosos. No Rio de Janeiro, os números mais elevados de crime letal foram registrados de 1986 a 1988. O patamar de hoje é dramático, mas inferior ao que vivemos naquela época. É uma ilusão achar que estamos chegando ao fundo do poço. O poço não tem fundo; as tragédias se repetem e se renovam. O problema é que nos acostumamos com esse quadro de violência e banalizamos a situação.

Em artigo recentemente publicado na Folha de S. Paulo, o filósofo Renato Janine Ribeiro admitiu, ainda que de forma velada, a prática da tortura e da pena de morte para fazer frente a crimes violentos como o que vitimou o menino João Hélio. Isso não seria um sintoma de que até os intelectuais, assim como boa parte da população, estariam se rendendo à lei de talião?

Eu não creio que o Renato Janine Ribeiro quisesse dizer isso. Penso que ele ficou tão perturbado emocionalmente que desejou que os acusados pagassem com a vida e sofressem o mesmo que tinham imposto à sua vítima. Em nenhum momento entendi que Janine estivesse propondo a tortura e a pena de morte como políticas públicas. Por outro lado, não concordo com a idéia de que os intelectuais tenham mais clareza sobre determinados temas do que a opinião pública em geral. Se os intelectuais tivessem chegado a um consenso em relação a questões básicas da segurança pública e se a produção de conhecimento fosse mais rica e extensa, as posições construtivas já teriam influenciado a população. A perplexidade da opinião pública reflete, de certa maneira, a perplexidade dos intelectuais. Como essa área continua sendo marginalizada, eles, diante da crise, tendem a reagir sem intrumentos mais sofisticados de análise.

A redução da maioridade penal é uma saída?

Sou contrário à redução da idade da imputabilidade penal. Isso significa ampliar o espectro de intervenção e responsabilidade do sistema penitenciário brasileiro. E esse sistema, salvo exceções, não inibe o crime, não repara o sofrimento e a perda da vítima, não ressocializa e não distribui a justiça de forma adequada. Se ele não funciona para os maiores de 18 anos, porque funcionaria para os menores? Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nunca foi efetivamente implementado. Qual o sentido de substituir ou alterar uma legislação que nunca foi posta em prática?