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Nº 1733 - Ano 37
11.04.2011

opiniao

Nós, a ACADEMIA, eles, o GOVERNO

João Vitor Rodrigues Loureiro*

A transformação é visível. O que o ensino superior brasileiro vivencia nos últimos anos vem produzindo efeitos percebidos por qualquer um que pise no campus da UFMG: investimentos em expansão e construção de unidades, esforços somados para a inauguração de um parque tecnológico e, por que não dizer, um trânsito conturbado nos arredores. Tais efeitos não são eventuais, mas traduzem a progressão sistemática do recurso mais caro a qualquer instituição: pessoas.

Já se foi o tempo em que aulas noturnas na Fafich eram entoadas ao som de grilos, envolvidas pela atmosfera de corredores vazios, cantinas sem filas e uma tranquilidade sorumbática das dez da noite. Essa transformação visível no cenário da instituição, as pessoas em velocidades industriais, ritmos fordistas, máquinas de fotocópias funcionando “a todo vapor”, filas contornantes, pontos de ônibus cheios, sinalizam o óbvio: o Reuni imprimiu nova dinâmica à Universidade.

Não se trata aqui de expressar insatisfação comum manifestada entre setores das classes médias brasileiras, antes beneficiados diretamente por uma política de acesso ao ensino superior restritiva e exclusivista. Tampouco se trata de apresentar críticas às consequências dessa transformação: um grande número de pessoas portadoras de diplomas universitários sem, no entanto, estar “preparadas para o mercado de trabalho”, ou ainda sem ocupar funções que façam retornar à sociedade o conhecimento como produto final de um investimento público em ensino, pesquisa e extensão.

E se trata, menos ainda, de criticar um modelo de política que investe prioritariamente no ensino superior e, secundária ou mais timidamente, nos ensinos básico, fundamental e médio. Tais análises são, pelo menos, ignorantes ou ingênuas. Ignorantes, porque rejeitam os resultados positivos da expansão, e ingênuas, porque simplificam a interpretação em efeitos presentes ao mitificar os efeitos da transformação em longo prazo.

Se talento, meritocracia e competição são os pilares da percepção liberal de funcionamento da sociedade que permeia (ou mesmo predomina) em setores da classe média favorecidos pela anterior restrição de acesso ao ensino superior, a democratização agora promovida deveria ser por eles comemorada. Afinal, em chances supostamente iguais de acesso à disputa, trata-se de demonstrar quem é o mais forte ou mais hábil. Que os adeptos de princípios liberais comemorem tal façanha! Claro, num país cuja formação social foi marcada por privilégios e benesses, essa visão liberal não vingou em sua forma pura.

Quanto à crítica à consequência do grande número de diplomados que não retornarão à sociedade, é sabido que conhecimento não é mercadoria, não se traduz em produto final, ainda que cada estudante de graduação ou de pós-graduação custe uma soma de reais. Importa encarar o conhecimento não como produto final, mas, sim, inicial de uma transformação: é meio de aprimoramento de habilidades, agrega inúmeras expectativas, e é chave de possibilidades. Há uma relação complexa entre conhecimento e adequação dele à vida do mercado. A universidade não tem por escopo a plena preparação profissional, a qual exige não apenas o “conhecimento“, mas, sobretudo, habilidades que somente se desenvolvem no ofício diário, na experiência efetiva de trabalho.

E é dado concreto: não são todos os egressos que exercerão especificamente funções daquele campo de conhecimento a que dedicaram anos de estudo, pois sabemos bem que demandas dependem de influxos econômicos, conjunturas favoráveis de valorização profissional e de escolhas pessoais. Por fim, ao modelo de democratização de acesso ao ensino superior não é cabível a crítica de desatenção à educação básica, média e fundamental. À parte os esforços empreendidos por políticas intergovernamentais, como é o caso do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e as competências constitucionais de investimento em educação, a educação básica, média e fundamental encontra na valorização do ensino superior um importante aliado para seus passos futuros. É na universidade que gestores, políticos e agentes públicos envolvidos com a educação se diplomam; é da universidade que saem os professores de amanhã. A diagnose de problemas atuais da educação em nível não superior remonta ao descaso e à subvalorização em que permaneceu, durante anos, a universidade pública brasileira.

Rejeitadas essas análises, que universidade democrática é essa de que estamos aqui tratando? Planos de expansão, criação de cursos, contratação de professores, aporte de recursos em projetos de pesquisa e extensão sinalizam um passo fundamental, mas ainda pequeno para as transformações exigidas pela sociedade brasileira.

Sim, sem dúvida, vemos ocorrer ampliação de acesso e oportunidades, fatores multiplicadores para o desenvolvimento. Mas outro fenômeno acontece: a universidade passa, aos poucos, a sinalizar um termômetro de demandas, que crescem em função da democratização do acesso ao ensino. São novos grupos sociais, novos componentes do espaço universitário. Se, por um lado, representam a transformação por meio do amplo acesso, sinalizam, por outro, as necessidades objetivas da modernização brasileira: empregos melhores, salários melhores, condições de vida melhores.

Os sujeitos passivos de uma transformação de hoje são os sujeitos ativos de uma transformação futura. É essa a proposta de mudança de qualquer instituição democrática: não estar descolada de centros de decisões, mas tomar parte efetiva dessas decisões. Reduzir a clivagem entre governo e universidade é dizer, contrariando o título deste artigo: “Nós, a academia, nós, o governo”.

* Graduado em Direito pela UFMG. Aluno do curso de Especialização em História e Culturas Políticas pela UFMG

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