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Nº 1810 - Ano 39
4.3.2013
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Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Uma pessoa inteligente é aquela capaz de separar o essencial do acidental, o valioso do que carece de valor, aquilo de que necessita para desenvolver uma determinada atividade daquilo que é irrelevante para a mesma. A inteligência, em sentido puramente etimológico, refere-se a essa capacidade de discernimento. A palavra latina intelligentia provém de intelligere, termo composto por intus (entre) e legere, que significa escolher ou ler. Ser inteligente é, assim, saber escolher a melhor alternativa entre várias, mas também saber ler dentro das coisas. Definição dada pelos manuais de psicologia: é a capacidade e a habilidade para responder da maneira mais adequada possível às exigências que o mundo apresenta.
Agir com inteligência pressupõe um atencioso e permanente exercício de “observação do mundo”. O desenvolvimento dessa capacidade compreensiva qualifica o teor do pensamento, que fica arejado pela sensibilidade capaz de caracterizar o ser humano como sendo uma unidade multidimensional. Com maestria poética, Cidinha da Silva, na obra Você me deixe, viu?: eu vou bater meu tambor! (2008), descreve a inteligência como sendo essa potência que permite conhecer a realidade em distintos graus e níveis de profundidade. Desde o primeiro contato dos sentidos até a compreensão da estrutura mais íntima da realidade, abre-se um grande espaço que exige de nós um entendimento gradual e processual. Vamos, então, às palavras da autora presentes no texto Umas e outras, que explicitam muito bem a mencionada prática de apreciar o mundo com disposição interior para o aprendizado: “Observação do mundo é um negócio que aumenta o balaio de conhecimento da pessoa. Encurta o caminho das dúvidas, amplia o horizonte de possibilidades. Acrescenta tijolos no barracão de sabedoria dos viventes”.
Observar e observar-se a si mesmo são duas atitudes completamente distintas; contudo, ambas exigem atenção. Na observação, a atenção é orientada para fora, para o mundo exterior, através das janelas dos sentidos. Na auto-observação, a atenção é orientada para dentro e, para isso, os sentidos da percepção externa não servem. O ponto de partida da ciência oficial, em seu lado prático, é o observável. O ponto de partida do trabalho sobre si mesmo é a auto-observação, o auto-observável. Nesse sentido, um ser capaz de tomar distância e de separar-se mentalmente de si mesmo, de sua própria circunstância, de seus ideais, valores e crenças, pode articular uma crítica adequada de sua rede conceitual. Logo, um dos principais benefícios do cultivo da inteligência é a consciência crítica.
O desenvolvimento da crítica depende fundamentalmente da capacidade sensível de aprendizado e compreensão da vida interior e exterior. Para tanto, pensamento e emoção constituem duas dimensões da inteligência humana e estão mutuamente entrelaçados. A respeito, existe uma curiosa passagem de Memórias do subsolo (1864), novela escrita por Fiódor Dostoiévski, cujo enfoque é ressaltar a inteligência como a capacidade racional e emocional de elaborar respostas complexas para situações vitais, que superam a lógica mecânica de estímulo e resposta: “a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo o coçar-se”.
Também podemos compreender a inteligência como a capacidade que permite adaptar-nos com certa velocidade aos recursos disponíveis e enfrentar situações novas que não havíamos previsto. Ela nos dá a necessária habilidade para resolver problemas que têm importância em um dado contexto cultural. Quem consegue ilustrar poeticamente esse parâmetro conceitual da inteligência, com delicadeza, é Elisa Lucinda, em Parem de falar mal da rotina (2010). No texto “Admirável mundo novo”, a escritora e atriz destaca a inteligência como princípio vital interior que sustenta o nosso senso compreensivo de realidade frente às constantes mudanças de cenário: “pode parecer uma chatice o que digo, mas é real que, se não estreamos junto à vida que a cada segundo se renova, ficamos para trás; nos colocamos em dissonância com o que vibra, pulsa, transmuta e é o mesmo em transformação a cada hora. Passageiros da vida, neste comboio que só para de vez quando desembarcamos, vamos nos arriscando, nos protegendo, nos adaptando às peripécias do inesperado e ao mesmo tempo, com o nosso olhar, pensamentos, mãos, intenções e atos, vamos influindo e alterando os rumos da história”. Inteligência, portanto, tem a ver com o poder de decisão apurada e de interferência no andamento positivo do mundo.
A vocação intelectual pretende superar o mundo do dia de trabalho, marcado por utilidade, oportunismo, produtividade, exercício de uma função. Aguinaldo Tadeu, em Enquanto eles jogam bombas (2009), mostra que uma vida intelectual seria pobre se se restringisse unicamente a um saber preocupado com a utilidade imediata, com a análise do curto-circuito das coisas. No poema Um trem azul para as nuvens, o autor alerta: “no meio dos fachos de luz/que queimam minhas vistas,/enrolam-se vaidades diversas/de uma constelação de interesses”. Por outro lado, o cultivo da vida contemplativa por meio do temperamento artístico confere sentidos plurais à inteligência. De acordo com os versos do poeta que refletem a autonomia do sujeito combinada com ideais de plenitude: “vivo outra realidade:/serena, vivaz, encantada./Enquanto eles bebem e se embriagam/do contagiante licor do sucesso,/saio sem ser percebido./Pego um trem azul para as nuvens/e vou atrás de meus sonhos”.
Aliando poder de abstração e saber de concretude, formar-se com inteligência é, portanto, tomar em mãos seu próprio desenvolvimento e destino, num duplo movimento de ampliação dinâmica de qualidades perceptivas e de compromisso ativo com a transformação da sociedade em que se vive.
* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Doutor e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Poeta, autor do livro Dezlokado (2010).