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Nº 1914 - Ano 42
05.10.2015
Luana Macieira
O marfim que desembarcou no Brasil colonial não vinha somente da Índia – como registra a historiografia corrente –, mas também de Angola e da Guiné, na África. Essa é uma das conclusões preliminares do estudo Marfins africanos no mundo atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, desenvolvido na UFMG e que pretende comprovar se, no período, já se fabricavam objetos com marfim. Também é objeto do estudo identificar as origens das peças e do marfim bruto e os proprietários dos objetos localizadas em Minas Gerais
Inédita no país, a pesquisa, coordenada pela professora Vanicléia Silva Santos, do Departamento de História da Fafich, já descobriu que, em uma das primeiras entradas de marfim no Brasil colonial, em 1723, foram confiscadas 1.243 presas de elefantes. Segundo ela, essa apreensão mostra que o material não chegava somente sob a forma de objetos de arte e outros produtos acabados. “A descoberta de que o país também recebia marfim bruto indica que havia uma produção local de peças. Encontramos documentos que mostram a solicitação da abertura de uma fábrica para produção de artefatos em marfim em Belém. E há indícios, ainda, de uma oficina de jesuítas para confecção de santos em marfim, na mesma região”, explica Vanicléia.
A professora acrescenta que os artefatos de marfim, por serem mais caros, pertenciam majoritariamente a pessoas brancas e ricas. Mas havia exceções. Uma das pesquisadoras do grupo, Rogéria Cristina Alves, descobriu recentemente o inventário de Caetana Maria dos Santos, mulher forra que possuía um par de brincos feitos de marfim, datados de 1787. “Essa é a primeira evidência de que os negros também usavam o material”, afirma.
De acordo com a historiadora, a investigação adota três frentes de investigação, que são complementares. A primeira envolve o levantamento dos acervos em marfim e sua documentação nas instituições mineiras. A segunda engloba estudos sobre cultura material em marfim, considerando a exposição a respeito da circulação de objetos, usos, constituição de gostos e de gestos que atribuíram valores ao material e justificaram sua procura, comércio e ostentação, por meio de testamentos e inventários pós-morte. A terceira frente é o estudo material, por meio da história da arte técnica, direcionado à tecnologia de construção dos artefatos e à identificação da matéria-prima, valendo-se de metodologias analíticas capazes de gerenciar hipóteses sobre seu intercâmbio no mundo colonial português.
Na UFMG, o projeto é desenvolvido pelo Departamento de História, da Fafich, e pelo curso de Conservação e Restauração, da Escola de Belas-Artes, que analisam inventários pós-morte e a iconografia das peças existentes em museus, igrejas e outras coleções particulares para descobrir a origem dos artefatos. Uma das estratégias é identificar nos testamentos se artistas (negros e brancos) possuíam as ferramentas apropriadas para o trabalho com o marfim. “Como as ferramentas eram declaradas nos testamentos, será fácil entender quem trabalhava com o produto”, afirma a professora Vanicléia.
Outra pesquisadora do grupo, a pós-doutoranda Renata Diório, do Departamento de História, está investigando os bens das igrejas e suas irmandades – associações formadas por negros, mulatos, africanos e brancos –, que encomendavam aos artistas as obras sacras instaladas nas igrejas, incluindo as produzidas em marfim.
Em fase inicial, a pesquisa vem sendo desenvolvida por meio de convênios entre diferentes universidades. Um deles, entre a UFMG e a Universidade de Lisboa, foi firmado neste ano e vigora até 2018. O grupo de Lisboa está analisando a documentação relativa ao comércio do marfim entre o Oeste da África e Portugal. Já a segunda frente, que envolve as universidades de Lisboa e de Évora, atuará na investigação dos objetos encontrados e catalogados, utilizando testes químicos para a verificação da autenticidade do material.
A comprovação de que o Brasil produzia objetos em marfim também mobiliza outras unidades da UFMG. Na Escola de Belas Artes, pesquisadores liderados pela professora Yacy-Ara Froner realizam o levantamento, em museus mineiros, do acervo de peças em marfim e fazem análises químicas e iconográficas dos materiais coletados para identificar se são genuínos ou imitações.
A equipe do Departamento de História, por sua vez, investiga, nos inventários do século 18, a propriedade das peças. “Se descobrirmos quem comprava as peças feitas com marfim, saberemos qual era o uso desse material. Identificamos peças de uso religioso, imagens de santos em sua maioria, ornamentos e alguns itens de uso cotidiano, como pentes”, conclui Vanicléia Silva Santos.
O marfim é um produto duro, branco e muito resistente. Obtido por meio dos dentes caninos de animais como elefantes e hipopótamos, é utilizado na fabricação de joias, enfeites e artefatos de arte, com elevado valor comercial. A caça de animais para a extração do marfim na África é um dos fatores responsáveis pela drástica diminuição do número de elefantes e de outros animais daquele continente. Em 1989, proibiu-se o comércio de elefantes e de seus dentes e presas. A caça continuou, e estima-se que 30 mil elefantes sejam mortos todos os anos para a extração do marfim.