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Nº 1956 - Ano 42
12.09.2016

opiniao

Revisão do programa Ciência sem Fronteiras*

José Celso Freire Junior**

O anúncio de mudanças no Programa Ciência sem Fronteiras (CsF) trouxe grande inquietação à comunidade acadêmica brasileira. As principais mudanças estão relacionadas ao início de um programa de capacitação em inglês para alunos do ensino médio e ao término do financiamento dos intercâmbios para estudantes de graduação.

Contrariamente à percepção geral, o Programa teve muitos acertos e foi crucial para o avanço da política de internacionalização das Instituições de Ensino Superior do país. Por outro lado, é inegável que equívocos foram cometidos em sua implementação e acompanhamento.

Talvez a questão mais importante esteja associada à sua avaliação. Mostrar à população os benefícios gerados pelo programa obriga uma avaliação efetiva similar à realizada com o maior dos programas de mobilidade do mundo, o Erasmus europeu, por meio do Erasmus Impact Study. E isso não foi feito.

Outro problema evocado diz respeito ao reconhecimento das atividades acadêmicas realizadas no exterior. Dados de programas de mobilidade do mundo todo indicam que esse problema não é exclusivo do CsF. Além disso, é inegável que o Programa obrigou as IES do Brasil a discutir a questão e, mais que isso, fez com que elas passassem a analisar as possibilidades de alteração em seus regulamentos e em suas estruturas curriculares e abordagens pedagógicas.

A falta de conhecimento de idiomas de nossos estudantes também é uma questão importante e foi um dos principais problemas encontrados para a efetiva implementação do Programa. A resposta, tardia, mas importante, foi o desenvolvimento do Programa Idiomas sem Fronteiras (IsF), a primeira política pública a tratar da questão do conhecimento de idiomas no ensino superior brasileiro. Muito ainda precisa ser feito, mas bases sólidas foram lançadas.

No mundo existem cerca de 20 mil IES. Afirmações de que somente 4% dos bolsistas do CsF foram para as 25 melhores IES do mundo também são exploradas de forma enviesada. Enviar estudantes para IES que estejam, por exemplo, entre as 500 melhores do mundo (2,5 % das existentes e onde encontramos somente quatro brasileiras, segundo o Ranking Times Higher Education) certamente oferece a eles uma excepcional experiência acadêmica.

Talvez a maior reação contrária ao Programa se deva aos desvios de recursos de outros programas para sua implementação. Sem entrar na questão da importância comparativa entre diferentes programas para a construção de um país apto a atuar em um mundo marcado pelo protagonismo da sociedade do conhecimento, pretende-se unicamente mostrar a importância do CSF nesse cenário. A necessária discussão sobre recursos deve ser certamente realizada.

Os argumentos apresentados acima foram utilizados como justificativa para a supressão das bolsas de mobilidade dos estudantes de graduação para privilegiar intercâmbios de doutorandos e pesquisadores. Para o avanço da ciência e para a construção de parcerias que favoreçam a colaboração científica entre as IES brasileiras e do exterior, esse tipo de mobilidade deve ser assegurado e incentivado.

A fim de sustentar essa afirmação, apresento dados do maior programa de mobilidade do mundo, o Erasmus europeu. Segundo o Erasmus Impact Study, foram aplicados 3,1 bilhões de euros para efetivar a mobilidade de 1,6 milhão de estudantes na Europa, de 1987 a 2014 (incluindo a mobilidade de 300 mil técnicos e professores).

O estudo mostrou que, em 2013, 64% dos empregadores europeus consideravam que uma experiência no exterior influencia fortemente suas carreiras e suas vidas. Estudantes europeus que participaram do programa tiveram sua empregabilidade bastante aumentada (em torno de 25%), e as chances de ficar desempregados caíram pela metade.

O mesmo estudo indicou que, em 2013-2014, somente 1% das mobilidades na Europa foi realizada por estudantes de doutorado, e 29%, por estudantes de mestrado. Na Europa, o período que um estudante leva para obter um bacharelado mais um mestrado é similar, na maioria das carreiras, ao tempo que um estudante brasileiro leva para obter sua graduação. Mesmo considerando outras fontes de financiamento, o número de mobilidade de estudantes de doutorado não é expressivo quando comparado a outros tipos.

Outra crítica constante veiculada pela grande imprensa diz respeito aos estudantes que teriam ido "passear", não cumprindo suas obrigações. Alunos com esse perfil existem em todos os programas de mobilidade do mundo e em proporções similares. As providências que vêm sendo tomadas pelas agências brasileiras são análogas ao que se pratica na Europa: obrigar os estudantes a devolver a totalidade dos recursos neles aplicado. Em vez de sobrevalorizar casos residuais, como tem sido feito, é importante reconhecer os excelentes resultados obtidos pelos estudantes brasileiros nas instituições estrangeiras. Um número expressivo de bolsistas do Programa CsF foi classificado entre os melhores alunos de suas turmas.

Apesar de todos os problemas, é patente que o programa efetivamente pôs o país no mapa da educação superior internacional, como indicou Cristian Muller, ex-diretor do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) no Brasil. Mais que isso, o CsF foi a primeira política pública visando à internacionalização da educação superior do País e, por isso, deve ser valorizado.

Nesse contexto, propõe-se que a sua nova versão considere modelo implementado por meio de consórcios (compostos de instituições de diferentes segmentos – público, privado, confessional – e regiões) liderados por IES brasileiras com maior experiência internacional, pois as parcerias dos membros favoreceriam a mobilidade a custos reduzidos. Mobilidades de alunos de graduação, pós-graduação (incluindo mestrado), professores e de técnicos administrativos seriam asseguradas. Além da mobilidade, ações da capacitação dos membros menos experientes beneficiariam o processo de internacionalização das IES participantes.

Dessa forma, a educação superior brasileira dará um grande passo em direção às melhores práticas e ações já realizadas no mundo, contribuindo, assim, para o desenvolvimento do país.

*Versão resumida de artigo publicado no Jornal da Ciência, de 3/08/2016
**Assessor-chefe de Relações Externas da Unesp e presidente da Associação Brasileira de Educação Internacional